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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

SOU PARENTE DE CANGACEIRO, E DAÍ?


*Rangel Alves da Costa


Muita gente se nega a assumir sua linhagem ou hereditariedade acaso o parentesco envolva um passado de valentia extremada ou de covardia exacerbada. Assim também quando o parente passou pela vida em meio ao que muitos denominam demérito. Segundo dizem, honroso é quando o parente deixou seu nome grafado no livro de ouro da memória ou está com seu nome em estátua, em bonito logradouro ou prédio público.
Na escolha do mito, certamente que ninguém vai optar por um parentesco que não honre e dê fama à sua imagem no presente. Daí dizer-se que o “zé-ninguém” tem família, mas não tem parentesco. Dificilmente será recordado como linhagem. Até mesmo entre os vivos alguns parentes são evitados, que se imagine depois de já partido para o além. Mas não há como afastar a linhagem ou o parentesco, qualquer que seja.
Eu, por exemplo, tenho no sangue sertanejo uma linhagem que vai desde o comum, passando pelo cangaceirismo, pelo comércio e pela política. Na minha raiz está o sertanejo de sol, de trabalho duro na terra, mas também a de possuidor de terras, de fazendeiro, de dono de armazém e bodega, de jogador de baralho e sinuca. Ainda na minha raiz está o homem hospitaleiro, o amigo da igreja e do cangaço, o nome hoje escrito na história e ainda vivo na memória de muitos. E na raiz mais recente, também o sangue político, da escrito, do verso, da sabedoria sertaneja. Assim desde meus avôs aos meus pais.
Saliento que sou parente de cangaceiro. Tenho no sangue familiar também a cor do sertão valente, destemido, corajoso, intrépido. Ou mesmo do mero banditismo, na concepção de alguns. Mas fazer o que? Se um dia um parente meu enveredou pelo mundo do cangaço e foi ser cabra de Lampião, quem sou eu para negar agora tal realidade. O que está escrito na história ninguém apaga. Se por honra ou desonra, a verdade é que o fato não pode ser negado. E o tenho com grande orgulho. Apaixonado pela história do cangaço como sou, ter um parente que um dia serviu ao bando de Lampião se torna até dignificante.
Assim, sou parente de cangaceiro, e daí? Sou sobrinho-neto do cangaceiro Zabelê, um dos três Zabelê que fizeram parte do bando de Lampião, e que estava na Gruta do Angico naquele terrível alvorecer de 28 de julho de 38, quando onze cangaceiros foram chacinados pela volante comandada pelo tenente João Bezerra. Morreram Lampião, sua Maria Bonita e mais nove cangaceiros. O meu parente conseguiu fugir das cuspideiras de fogo, embrenhar-se nos carrascais catingueiros e sumir no oco do mundo. Depois disso desapareceu de vez, nunca mais retornou a Poço redondo, seu berço familiar.
Minha avó paterna Emeliana era irmã - por parte de pai e de mãe, como se diz no sertão - de Manoel Marques da Silva, mais tarde apelidado como Zabelê no bando de Lampião. Manoel Marques, o Zabelê, era filho de Antônio Marques da Silva e Maria Madalena de Santana, a Mãe Véia. Tio materno de meu pai Alcino Alves Costa era, pois, meu tio-avô. E meu pai, depois um reconhecido e valorizado escritor da saga cangaceira, nunca negou a ninguém seu orgulho desse tio desgarrado da terra e viajante pelos perigos dos sertões.
Rapazote ainda, quase na idade de menino, influenciado pelas andanças do bando do Capitão pela região de Poço Redondo, no sertão sergipano, eis que um dia Manoel Marques decidiu seguir no rastro dos homens do sol, da lua e da catingueira. Abandonou a família para nunca mais retornar ao lar, ainda que muito andasse em séquito pela região e redondezas. Como dito, estava presente na Gruta do Angico quando Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram chacinados pela volante alagoana, porém saiu ileso. Mas desse dia em diante ninguém mais teve notícia de seu paradeiro.
Com o nome de pássaro, pois Zabelê é nome de bicho que voa, talvez tivesse voado para uma desconhecida distância. Durante muitos anos seus familiares entrecortaram regiões do país no seu encalço, em busca de seu paradeiro, mas sem jamais reencontrá-lo. Voou, Zabelê voou. Arribou para sempre e nunca mais retornou. Hoje é pássaro somente na história e na recordação. Deixou apenas um irmão e muitas irmãs, dentre as quais minhas tias Mariquinha, Osana, Cordélia, Mãezinha, Conceição e Rosinha, todas já falecidas. Seus parentes de hoje formam um Poço Redondo inteiro.
Zabelê é, assim, parte de uma linhagem que orgulha seus parentes de agora. Não há um só familiar que renegue ou se diga diminuído pelo parentesco com o cangaceiro. Pelo contrário, sempre ecoa forte e orgulhosa a afirmação de ser parente de Zabelê, de ter no sangue seu lastro destemido e aventureiro. Também do cangaceiro poeta, apaixonado, cantante das coisas da terra e dos amores da vida. Pássaro sertanejo este Zabelê. Lamentoso e triste, porém ainda persiste o seu cantar.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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