SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

DA MEMÓRIA DO CASARÃO DE PAI CHINA E MÃETA


*Rangel Alves da Costa


Toda vez que estou em Poço Redondo, meu berço de nascimento no sertão sergipano, a Praça da Matriz logo me desperta saudade grande. Noutros tempos, quem ali chegasse logo avistaria a suntuosa moradia de meus avôs maternos.
O casarão de Seu China e Dona Marieta (Mãeta) situava-se na esquina da Praça da Matriz com Deoclides Lucas, onde atualmente funciona uma grande casa comercial. Era uma casa grande, bonita, imponente, com arquitetura majestosa e curvas nascidas na maestria artesanal.
Quando meu avô China partiu, a casa grande ficou sob os cuidados solitários de minha avó Mãeta. Mas esta nunca estava sozinha, pois Bel de Iolanda sempre sua companheira fiel. Bem sempre estava ali ajudando minha avó nos seus afazeres, cuidando de uma coisa e outra, afastando a saudosa solidão.
Durante algum tempo os meus pais moraram por lá, e eu acabei ficando por muito tempo, dividindo minha meninice entre a casa na Rua dos Vaqueiros (atual Avenida Alcino Alves Costa, onde hoje é a casa de Gracinha) e a casa grande de minha avó. Só arribei quando a marinete de Seu Vavá me levou ao exílio na capital.
Ora, teria que estudar em meio mais avançado. Mas a casa grande ainda hoje se faz viva e presente na minha memória. E toda vez que eu retornava ao sertão, a primeira visita era àquele segundo lar de afeto e carinho. Todos os móveis no mesmo lugar, a cristaleira, o oratório, a mesa grande, o quintal tomado de plantas.
Ao lado da casa, vizinho à casa de Delino, havia um salãozinho aonde nos tempos idos meu avô manteve uma bodeguinha. Cajuína, rolo de fumo, carne salgada, cachaça, vinho de jurubeba, querosene, um quilo disso e daquilo. Depois se tornou barbearia e salão de aluguel, até sumir junto com o belo casarão.
E desaparecido também o testemunho vivo da história, pois ali, dentro daqueles aposentos, o famoso encontro entre Lampião e o Padre Arthur Passos, entre a cruz e o mosquetão. Com efeito, para espanto de todos, um dia o rei cangaceiro despontou com seu bando e logo bateu à porta do meu avô.
Mas o velho sacerdote estava por lá e dormitava num quarto. Quase o mundo acaba nesse dia, mas depois tudo acabou em regabofe em mesa farta. E mais tarde a cangaceirada assistindo a missa celebrada em louvor à Nossa Senhora da Conceição, padroeira da povoação.
Ao entardecer, recordo bem, minha avó colocava sua cadeira junto ao beiral da porta e ali permanecia abençoando todo mundo que passava. “Bença, Mãeta!”. “Deus abençoe, meu filho!”. Não havia um só pessoa que não lhe desse a benção ao passar defronte à calçada, era como um ofício e uma obrigação.
Mesmo miudinha, naquele colo muito eu encostava minha cabeça para receber cafuné. Chegava sujo e ela logo dizia: “Tá reno meu fi, tá reno... Se dana pelo mundo e chega assim parecendo um molambo!”. Depois encostava minha cabeça no seu colo e dedilhava poesia nos meus cabelos tão sujos.
No outro lado, em frente às janelas grandes do quarto, a rapaziada se juntava para conversar. Muitos se deitavam e até cochilavam sob as sombras daquelas paredes grossas, de cores fortes, sem jamais imaginar que tão de repente tudo aquilo iria sumir, simplesmente desaparecer.
Quando derrubaram o casarão, então senti a mesma sensação daquele menino Zezé quando cortaram seu pé de laranja lima. Minha infância e parte de minha vida também deixavam de existir.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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