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segunda-feira, 16 de outubro de 2017

MINHA AVÓ NA CALÇADA


*Rangel Alves da Costa


Os anos correm com o fôlego do tempo e quando olhamos para trás quase já não nos avistamos mais. Sentimos nosso envelhecimento pelos outros que nascem e que crescem e não pelas marcas e rugas que passamos a carregar. Nossas marcas de tempo ficam como ocultas e sequer percebemos o quanto já caminhamos na estrada.
De repente olhamos para um rapazinho ou uma mocinha e nos espantamos de que aquela vida é filho ou filha de um amigo de infância. Um jovem que passa, uma moça que passa, então a surpresa de sua filiação. Já? Então nos perguntamos. Mas ali também a nossa idade, pois enquanto eles nascem, crescem e se tornam adultos, em nós apenas os passos do envelhecimento.
E outros e mais outros vão surgindo e em nós o envelhecimento ainda maior. Contudo, ainda sem atentarmos o quanto os espelhos tentam a todo instante nos dizer e nos alertar. Mas não há outra verdade. Um percurso aonde a flor viçosa e bela vai perdendo seu viço e perfume até pender de vez no jardim da existência.
Mas será que nunca nos reconhecemos envelhecendo senão pelos outros? Será que nunca ouvimos nem sentimos as verdades refletidas no espelho? Através da memória há esse forçoso reconhecimento. Através da memória a chegada de um calendário que não nos nega o tempo de existência.
Quanto mais coisas antigas nós recordamos mais dizemos dos nossos anos vividos. Quanto mais os velhos álbuns da memória vão passando suas páginas amareladas mais nós temos a certeza de que já não somos de ontem. Quanto mais nos lembramos de coisas velhas, antigas, de outros tempos, mais aproximados desse tempo também estaremos.
Então responda: Você se lembra de minha avó Marieta na calçada? Sim, naquela calçada da casa bela de esquina, na Praça da Matriz de Poço Redondo, de arquitetura majestosa, sobressaindo-se perante as demais construções? Talvez a casa mais conhecida e mais recordada da cidade sertaneja.
Conhecida não só pela arquitetura como pela história. Deveras, ali mesmo o Capitão Lampião um dia chegou acompanhado de seu bando e logo ficou sabendo da presença do Padre Arthur Passos num dos quartos. E agora, o que fazer, ante a cruz e o mosquetão? Acabaram dividindo o mesmo regabofe sortido de buchada e carne de bode. Mas isso coisa de outros tempos.
Mas voltando à minha avó na calçada, quem tem por volta de vinte anos ou até mais certamente não vai recordar. Minha avó Marieta, por todos conhecida como Mãeta, já miudinha pelo envelhecimento, sentando ao entardecer em sua calçada para abençoar todo poço-redondense que por ali passasse. Ela simbolizava a própria maternidade sertaneja.
“Bença, Mãeta”. “Deus abençoe, meu filho”. “Bença, Mãeta”. “Que Deus lhe acompanhe, meu filho”. Com todo mundo era assim, desde o mais novo ao mais velho. E tudo mundo pedia sua benção ao passar por ali. Mas já desde muito que aquela calçada não existe mais, que aquela casa não existe mais, que Mãeta não está entre nós.
O mundo de Mãeta era aquele depois do envelhecimento, estar apenas na calçada depois do entardecer, vez que já não frequentava a igreja com a assiduidade de quanto mais nova e com forças para caminhar. E quem sabe ali na sua cadeira ela não ficasse relembrando outros passados, coisas muito mais envelhecidas?
Não sei se em sua mente a idade surgia como um distanciamento daqueles tempos idos, mas tenho certeza que ela sabia que somente havia chegado àquela fase da vida por ter ultrapassado muitas curvas do caminho. Ela estava velha por que havia vivido muito. Mas a maioria das pessoas se reconhece envelhecida pelo tempo da caminhada?
Muitas pessoas fogem do tempo, dos anos, da caminhada, chegando até a negar a idade. Muita gente quer passar a ideia de uma eterna juventude em um corpo carcomido de tempo. Mas vale a pena querer ser outra pessoa quando o seu íntimo, sua biologia e sua compleição física, não atendem tal desejo?
Minha avó Marieta era teimosa, arrelienta, mas nunca negou a idade. Foi se reconhecendo sábia pelos frutos colhidos pela estrada. Por isso mesmo o reconhecimento com uma mãe de todos, uma parenta de todos, uma avó de todos. Nela certamente avistava o respeitoso envelhecimento. Mas qual o reconhecimento na idade própria daqueles que ali passavam pedindo a benção?
A maioria dava a benção e seguia adiante. Não imagino que alguém se imaginasse em envelhecimento sentado ao entardecer numa calçada. Ninguém pensava em velhice, tudo como se o tempo fosse somente o momento. E hoje muito tempo já passou.
Muita gente ainda a recorda como se tudo ainda fosse um retrato guardado na memória. E se há essa viva recordação, é por que os anos já deixaram marcas muito além da memória. E o envelhecimento vai, inexoravelmente, chegando.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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