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sexta-feira, 25 de agosto de 2017

LAMPIÃO NO ORATÓRIO


*Rangel Alves da Costa


Os grandes feitos dos homens, ou mártires da abnegação e da fé, são reconhecidos pela Igreja e tais feitos de desapego ao mundano e devotamento religioso através da santificação. Mas não somente a Santa Sé reconhece e erige pessoas à santidade, vez que pessoas, comunidades e povos, também constroem altares àqueles que reconhecem como verdadeiras santidades.
É pela fé, pela crença e pelo devotamento, que o povo, principalmente o mais comum da sociedade, vai tornando seu mito humano em santidade. Acontece muito isso na região nordestina do Brasil. De vez em quanto se encontra uma cruz da donzela ou uma cruz do homem, sempre com a presença de uma capelinha de refúgio e oração. Significa dizer que a donzela ou o homem são acreditados e devotados como se santificados fossem. E não há como afirmar que o povo esteja errado na sua concepção, vez que tudo nascido na crença maior.
Os exemplos maiores, contudo, dizem respeito aos reconhecidamente santos nordestinos, ainda que sem reconhecimento oficial da Igreja. Padre Cícero Romão Batista, o tão conhecido Padim Padre Ciço do Juazeiro, bem como o Frei Damião, se constituem nesta manifestação explícita da fé íntima de um povo. O Santo do Juazeiro desde muito é devotado pelo Nordeste inteiro e tido e havido como milagreiro e até como o maior dos santos. Sua representação é tão forte que não há de se falar em religião nordestina sem colocá-lo no pedestal maior de crença e devotamento. Depois de Deus, do Nosso Senhor Jesus Cristo, a valia no Santo Padim, é assim que o povo se expressa.
Não obstante a santificação pelo povo daqueles vindos da própria Igreja, como é o caso do Padre Cícero e do Frei Damião, também altares erguidos aos beatos e beatas e seus milagres. Pessoas oriundas das camadas comuns da sociedade, mas depois abraçados pela religiosidade e pelas causas maiores da fé. Daí surgirem os beatos afeiçoados a pastores e com dezenas ou centenas de seguidores. Daí as beatas ungidas pelo sangue da fé e no além continuando como verdadeiras protetoras e milagreiras. Como afirmado, não há como volver da mentalidade do povo outra noção de religiosidade, principalmente de base científica.
Que não haja espanto com a santificação de Luiz Gonzaga, de Patativa do Assaré, do Cego Aderaldo e tantos outros dignificantes homens nordestinos. Basta o povo querer e não há como desfazer o altar. Por isso mesmo que Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião, cangaceiro maior dos carrascais nordestinos, passou a ser mitificado de tal modo que, tantas vezes, vai muito além do herói para se firmar como verdadeiro mártir dos sertões brasileiros. Seria, assim, um Lampião santificado pelo povo.
Por que a santificação pelo povo não exige nada além da crença do próprio povo, certamente que o reconhecimento de seu valor igualmente não exige sequer o conhecimento ou aprofundamento na sua história, seu percurso de vida, seus feitos, seus males ou bondades. E muito menos de sua religiosidade, hoje reconhecida como de devotamento aos santos e principalmente ao Padre Cícero do Juazeiro. Basta apenas que o líder cangaceiro seja visto pelo povo como injustiçado, perseguido, vitimado na sua luta. E tem muita gente que pensa assim, que concebe a figura de Lampião como um mártir nordestino.
Aqueles que pensam assim - e que, repita-se, são muitos - são também aqueles que voltam das feiras interioranas trazendo no embornal duas imagens de barro de igual valor: Padre Cícero do Juazeiro e Virgulino Lampião. Nos seus entendimentos, duas imagens que merecem guarida nas suas casas ou casebres de cipó e barro. E de repente, num ânimo espiritual sem plausível explicação, e os dois passam a ser avistados até mesmo dentro de oratórios. Mas, e urge que se saliente, também em muitas mansões e requintadas moradias nordestinas, pelas paredes e móveis não se avista imagem alguma de santo, mas a de Lampião está por todo lugar.
O sentido da santificação de Lampião pelo povo não está, contudo, no seu poder milagreiro ou nos seus feitos religiosos ou ainda de caridade, mas tão somente pelo poder de escolha popular de seus mitos, seus heróis, seus protetores. O estudioso ou pesquisador, com cátedra em heroicizar ou destruir, certamente possui argumento apropriado para dizer que Lampião nunca passou de um reles bandido ou que foi um grande herói. Mas isto não tem valia alguma àquele que simplesmente devota o Capitão. Para este, vale o homem e não o que digam sobre ele.
E assim, como fez certa vez a Velha Titoca, Lampião saiu da feira e foi fazer moradia diretamente no oratório. Ao lado das imagens de santos da Igreja e de Padre Cícero e Frei Damião, que são os santos nordestinos, o rei cangaceiro com sua imponência catingueira. Ao lado uma vela acesa. E diante de tudo a velha sertaneja ajoelhada em oração: Que todo mal seja desfeito pelo Padim Ciço Romão e pelo Frei Damião. Que toda injustiça seja combatida por Virgulino Lampião.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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