*Rangel Alves da Costa
Aqueles meus afetos estão perdidos e agora só
me resta uma xícara de café. Mas amo do mesmo jeito. Sem boca pra beijar, roço
o lábio na borda da xícara e me imagino sorvendo um beijo gostoso. Não quero pensar
nisso agora. Já desde mais de duas horas que não tomo um cafezinho e necessito
de seu afago. Uma pequena xícara, apenas, mas como uma companhia que me ouve e
fala baixinho. E a tudo compreendo.
Não vivo sem um cafezinho. Acaso não houvesse
nem o pó nem o grão, certamente derramaria na xícara um punhado de noite sem
lua e depois, lentamente, sorveria um instante de alegria e prazer. Mas lá
dentro a água já ferve e a xícara já está ao redor, o café também, então não há
com o que me preocupar. Porém preocupo-me sim. Basta levar a xícara à boca e é
como se no caldo oloroso e enegrecido também chegasse uma saudade grande.
Saudade amarga, fervente demais, de coisas tão presentes e tão distantes.
Mas enfrento o medo para tomar um cafezinho
agora. Sigo até o fogão e de lá retorno com a pequena xícara que diz muito mais
que a largueza do mundo e de tudo. Não há poesia minha que não venha antecedida
por um gole de café, não há prosa minha que não surja molhada de café, não há
qualquer escrito que não chegue perfumado e com inigualável sabor. Talvez
esteja no café minha inspiração, vez que sem qualquer gole também nada sei
fazer. Sequer pensar. Depois de um cafezinho e um cigarro eu me torno poeta,
profeta, filósofo, um sábio. Mas também menino, também nostálgico, também em
busca de mim mesmo através de outros passos passados.
Fogo de chão, de tora e gravetos. A chama
valseia pelo ar enquanto a chaleira repousa sobre o braseiro. Um momento mágico
na vida interiorana de onde vim. Agora mudou, mas por lá nunca era um café
qualquer. Café de verdade, café torrado, batido em pilão, peneirado, pronto
para formar o caldo grosso ao ser juntado à água fervente. Daí era só esperar
um pouquinho até que as borbulhas começassem a surgir e o líquido oloroso e
aromático se derramar pelas bordas. Nem precisava de coador. Dali mesmo ia
direto à xícara. E que coisa tão boa de recordar.
Mas quero um cafezinho, agora... E depois
mais outro e mais outro. Adoro café. E café negro retinto, forte, sem açúcar,
chegando ao oleoso perto dos lábios. Sempre gostei de café, mas não nesse
metodismo apaixonado. Por muito tempo experimentei o café comum, desses
servidos pelas mesas de jantares e desjejuns. Lembro-me muito bem que minha
concepção de café se iniciou pelo seu aroma perfumado ao entardecer.
Na cidadezinha onde nasci, lá pelos sertões
sergipanos mais distantes, o entardecer era uma verdadeira festa ao olfato,
senão a todos os sentidos. Dona Lídia primeiro torrava o café em grão, depois batia
no café pilão, para mais tarde despejar o pó no caldeirão fervente ao fogão de
lenha, pois era muito café para servir a tanta gente ansiosa por uma xícara de
seu esmerado preparo. E então, uma festa pelos ares. Quando fui lá implorar um
pouquinho na xícara, jamais imaginaria que eu iria verdadeiramente me
apaixonar. E me fiz assíduo daquela xícara a todo entardecer sertanejo.
Tempos depois, já na capital sergipana,
passei a experimentar café de máquina de balcão. Uma delícia também, pois o
autêntico café era despejado diretamente na água fervente da máquina e já
descia borbulhando e oleoso. Hoje em dia está muito difícil encontrar um bom
café pela cidade. Aquelas máquinas praticamente não existem mais. Os cafés modernos
perderam o gosto e a essência. Mas isso não me faz menos apaixonado pelo café,
que bebo desde as quatro da manhã até a noite chegar. Infelizmente café
solúvel, mas não o que fazer. Esquento a água e depois despejo na xícara já com
duas colheradas pequenas de grãos miúdos. Em seguida vou ao portão avistar e
sentir a chuva caindo, reabrindo velhos baús na memória e recordando ainda
aquele entardecer sertanejo e o café de Dona Lídia.
Por isso que bebo na xícara e na memória
aquele cheiro gostoso de outrora. Dispenso o uísque, rejeito o bom vinho, mas
peço-lhe encarecidamente que me traga um cafezinho. E agora.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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