SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 10 de setembro de 2016

MANHÃ COM PASSARINHO E CAFÉ


*Rangel Alves da Costa


Estou no sertão. E o meu sertão é bem sertanejo mesmo, autêntico, matuto, caboclo, caipira. Aqui a seca é mais seca, o sol é mais sol, a pobreza é mais pobre, a carência é mais angustiante. Mas também tudo mais bonito: o mesmo sol da secura, a lua maior e mais bela que possa existir, a singeleza de um povo humilde e cordial, as paisagens cactáceas e os bucolismos em tudo.
Poço Redondo, sertão de Sergipe, eis o nome do meu lugar, de minha terra, do meu berço de nascimento. Acordo agora, pouco mais de quatro da manhã, no silêncio da paz, somente interrompido com o canto passarinheiro que ao longe ouço. O mato não está longe, a natureza vive a partir dos quintais. Meu pássaro, que é o pássaro de todos já despertados, canta e canta, canta e canta mais. Talvez muitos pássaros, mas a melodia sintetiza a canção.
Algumas razões fazem com que aumente o contentamento com o canto passarinheiro. O sertão era pujante em bichos nativos. Suas matarias eram repletas de nambus, codornas, seriemas, tatus, pebas, preás, veados, onças, bicho grande e bicho pequeno, de chão e de voo. A passarinhada nem se fala. Uma terra de coleirinhos, azulões, cabeças, sabiás, curiós, canarinhos, e muito mais. Mas coisa de outros tempos, de um passado já esmaecido na moldura.
Com a devastação da natureza, o ambiente natural do bicho praticamente deixou de existir. Onde não há catingueira, baraúna, angico, umburana ou qualquer pé de pau, não há como o pássaro pousar, não há como fazer seu ninho nas altas galhagens, nos tufos entre as folhagens. Também não há como levantar voo. Ora, pássaro voa de canto a outro e é o lugar de seu pouso que vai demarcando seu território. E sem o mato abundante tudo se torna difícil na sua existência. Por isso mesmo partiu em revoada.
Passarinhos ainda existem, mas quase uma raridade perante a pujança de antigamente. E tanto existem que ouço o seu canto ao alvorecer. Agora mesmo sinto pertinho o seu trinado, a sua melodia do amanhecer. Mas não será certeza de encontrá-lo no alto de pé de pau depois da porta da casa ou pelos arredores. Hoje em dia, ante a sua ausência no meio do mato, a mocidade opta por uma solução dolorosa: engaiolar a vida e o seu canto. E mesmo assim ainda cantam em cativeiro.
Uma coisa é certa, logo cedinho a rapaziada vai passando pelas ruas calmas levando gaiolas. Assim fazem numa injustificável e desumana atitude: levar o passarinho engaiolado para o pé de pau e lá, no meio da mataria, imaginar que está liberto. E, na presença de outros pássaros em liberdade, não perca suas razões de viver, o seu canto, sua melodia. O dono da gaiola vai forjando ilusão de liberdade somente para que o pássaro não entristeça de vez ao retornar às paredes de seu aprisionamento.
Assim acontece por aqui. Mas o canto passarinheiro sempre ecoa ao alvorecer. E um canto de pássaro livre, de pássaro ainda feliz, de pássaro que vem despertar e depois retorna à sua paisagem pelos arredores e mais distante. A esta hora, ainda cedinho, basta sair de casa e mais adiante sentir a força viva do despertar da natureza. Ou do que ainda resta da natureza. Mas ainda o tufo de mato, catingueiras solitárias, uma ou outra árvore ainda viva e dobrada pela idade. Daí os sons que ainda surgem, os cantos que ainda ecoam.
O passarinho continua cantando. Tão pertinho que parece ao lado de minha rede. Sigo em direção à cozinha e o canto me acompanha. Acendo o fogo para um café ainda ouvindo a melodia. Olho da janela e sinto que a manhã já se levanta. O friozinho da madrugada vai se dissipando aos poucos. O café quentinho vai trazendo o calor que terá presença o dia inteiro. Ainda de xícara à mão, abro a porta e olho ao redor.
Ouço o canto. Ainda pertinho de mim. Mas não há pássaro. Talvez seja apenas a minha memória, a minha saudade que chama aquele amanhecer de antigamente.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com 

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