SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 21 de agosto de 2016

O FUNERAL DA VACA MAGRA


*Rangel Alves da Costa


A feição da vaquinha era uma tristeza só: no couro e osso, esquelética, fraca demais, tendente a cair a cada passo. Sem chuva desde muito, sem capim ou planta rasteira no chão, sem água ou mesmo lama no tanque, sem esperança alguma de sobrevivência, apenas os dias marcavam sua despedida da vida.
O sol escaldante descia sobre os seus olhos fundos e os deixava como sem viço algum. Olhos petrificados, tristes, rodeados de moscas e outros insetos. Da boca descia uma baba gosmenta que certamente era a junção de todo o fluído restante do corpo. Já sem força alguma, não podia sequer seguir mais adiante até debaixo de um velho umbuzeiro. Talvez alguma sombra lhe diminuísse ao sofrimento.
De repente, das profundezas dos olhos desceram duas lágrimas. As últimas. E tinha sua razão de ser. Não suportou a dor quando sentiu urubus em rasantes acima de si. Sabia que aqueles carnicentos esperavam somente sua queda para a impiedosa comilança dos restos mortos. Os seus restos. Não duvidava mais que iria morrer. Ouviu um carcará e fechou os olhos. Quis mugir. Não pôde. Já não tinha forças.
Caiu antes de o sol se pôr. Desolada e triste, temendo ser atacada pelos carnicentos antes mesmo da morte, quis forçar o passo e chegar até o umbuzeiro. Uns trinta metros apenas, mas longe demais. Tudo longe demais ante as forças que se esvaíam. Tropeçou numa pequena pedra e tombou. Caiu e deu um mugido tão alto que ecoou por todo o sertão.
Ainda ofegava quando os urubus, os gaviões e os carcarás avançaram pelos ares. Contudo, repentinamente um canto passarinheiro surgiu tão estridente que fez recuar todos os carnicentos. Um tem-tem, pássaro que vela a vida e a morte sertaneja, soltou o seu grito como para anunciar que a vaquinha magra já dava os seus últimos suspiros.
Preocupado em anunciar perante todos os bichos aquele instante de tristeza e despedida, o tem-tem não sabia, mas a vaquinha já havia morrido. Por enquanto afastados os carnicentos, o pássaro se aproximou um pouco mais e então aumentou o tom do seu canto fúnebre. Enquanto os sinos das igrejas dobram anunciando as mortes, assim também com o dobrar aflito daquele pássaro sertanejo.
O tem-tem procurou o lugar mais alto da catingueira mais alta e ali pousou não só para continuar anunciando a despedida como para espantar os carnicentos e esperar a chegada dos bichos. Tinha certeza que logo chegariam vacas, bois, bezerros, cavalos, jegues, cabras, pássaros, e muitos outros bichos. Contudo, o tempo foi passando e nenhum sinal daqueles amigos das caatingas.
Quando o entardecer já tomava uma cor afogueada e o sol abrasava para tostar e ir embora, então o tem-tem, lá do alto, percebeu que alguns animais se aproximavam, mas tão lentamente que até parecia que não conseguiriam chegar. Então o pássaro alçou voo para se certificar sobre o que ocorria com aqueles bichos e logo se assustou com as terríveis cenas: tal qual a vaquinha antes de morrer, os bichos igualmente esqueléticos quase não conseguiam caminhar.
E que indescritível tristeza daí em diante. Não demorou muito e um bezerro caiu, depois uma vaca, depois um jumento, e depois e depois... Quando as sombras da noite já avançavam pelos sertões, então dezenas de bichos jaziam mortos ao redor daquela vaquinha magra, como num velório único nas ressequidas e tristes paisagens.
Somente o tem-tem fez sentinela, somente o tem-tem velou seus irmãos vítimas dos sofrimentos, das estiagens, das secas, das desolações sertanejas. E muitos velórios e funerais acontecem assim o tempo todo. Pelos pastos sem vida, pelas terras sem grãos, então a morte chega sem piedade. Por isso tanta dor no homem sertanejo ao conviver com cemitérios ao redor, com as ossadas de suas crias.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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