SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 11 de maio de 2016

NOITE MOLHADA (E A CHUVA QUE AMANHECEU)


*Rangel Alves da Costa


Ontem, logo cedinho encontrei meu cágado zanzando de canto a outro. E não tive dúvidas de que iria chover. Não há meteorologista mais eficiente e certeiro do que o cágado. Passa semanas, meses ou mais, escondido nas tocas, mas quando sai é para anunciar chuvarada. Não falha uma.
Mas a chuva se demorou a chegar. O dia inteiro nublado, com um sereninho aqui e outro acolá, mas nada de pingo mais grosso cair. Somente depois do entardecer, já chegando à boca da noite, é que as nuvens começaram a abrir suas torneiras, ora mais leves ora mais derramadas. Assim a noite foi se molhando e transformando as ruas em desertos e os asfaltos em espelhos que se derramam poeticamente nostálgicos.
Gosto quando chove ao anoitecer e molhando vai noite adentro. Minhas plantas dispensam a água de todo dia e parecem festejar com os pingos caindo nas suas folhagens. Amanhecem alegres, verdejantes, cheias de vida. Também o clima melhora, afasta um pouco da elevada temperatura, e sempre torna possível dormir melhor. Igual a mim, muita gente gosta de sentir a chuva caindo lá fora enquanto espera o sono chegar.
A chuva tão esperada sempre chega acompanhada de esperança, de alegria, contentamento. Mas também com o poder de aflorar sentimentos, entristecer e até fazer chorar. E assim porque o recolhimento pelos cantos da casa vai trazendo lembranças, abrindo baús, retomando o passado bonito e pesaroso. A nostalgia vai transformando o anoitecer molhado num reencontro indesejado.
Quando chove assim, após o anoitecer, eu sempre gosto de me posicionar ante o portão da frente e ficar observando a magia acontecer. Perante a luz do poste, as gotas se tornam perceptíveis e estranhas ao olhar: elas não descem retas, mas um tanto encurvadas. Depois de caírem no asfalto, logo este vai espalhando pelos arredores um transbordante espelho. E este se lava e novamente se encharca daquele alento molhado.
Mesmo o olhar voltado à rua e a mente vivenciando a beleza do instante, ainda assim é impossível não rebuscar outros pensamentos. Por dentro uma aflição, uma angústia inexplicável. Por dentro uma vontade de chorar, de correr pra debaixo da chuva, de tentar renascer com o banho nas águas novas. Uma recordação de criança, uma viagem às correrias da infância, uma caminhada ao que já se distanciou demais.
Já tomei muito banho nu debaixo da chuva. Quando criança, eu transgredia todas as precauções familiares e desandava no meio do mundo, atrás de calçada lisa para me jogar, atrás da meninada para lambuzar, atrás da criançada para tudo fazer debaixo da chuvarada. E quanto mais a chuva caía forte mais motivos havia para a danação. E sobre tudo isso recordo nos dias de agora, assim que a noite se faz chuvosa.
Sei que muita gente se envolve nos lençóis e irrompe suas saudades sem mostrar suas lágrimas. Sei que muita gente silencia para não falar sobre os motivos de suas tristezas. Sei que muita gente se esconde pelos cantos e finge adormecer. Mas dentro de si uma estranheza sem fim, um despertar de muita coisa que desde muito julgava esquecida. E a mocinha rente à vidraça embaçada, chorosa por dentro, vai rabiscando e desenhando corações e luas, pingos e lágrimas.
Choveu grande parte da noite. Levantei na madrugada e os horizontes nublados apontavam mais chuvarada. De vez em quando a chuva cai e vai tornando a manhã mais lenta, mais preguiçosa, mais escondida. As ruas molhadas dificultam a caminhada, os pneus dos veículos espanam aguaceiro em quem estiver ao redor. Pessoas passam de cabeça baixa, silenciosas, protegidas por guarda-chuvas. E assim o dia vai nascendo molhado.
Acaso fosse no sertão, o amanhecer seria festivo, alegre, cheio de planos e esperanças. Mas na cidade é apenas uma manhã de chuva. Apenas.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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