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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O SERTÃO E AS HORAS LAMURIOSAS


Rangel Alves da Costa*


Lamuriosas são as horas mais tristes, mais dolorosas, que causam mais sofrimento e consternação. Lamúria é lamentação, é queixume, é contínua expressão de dor diante de um infortúnio. E as lamúrias sertanejas estão presentes desde o instante em que se noticia a morte de alguém.
Os tempos são outros, as dores retraíram-se ao patamar do simples pesar ou tristeza. A vida em si perdeu grande parte de seu significado, e a morte muito mais. Não se lamenta mais uma perda como antigamente, não se chora mais a despedida como noutros tempos. A vulgaridade ou desprezo pela vida acaba transformando a morte num mero acontecimento.
Até mesmo as sentinelas, que consistiam em ritualisticamente guardar o falecido até a hora da condução à última morada, já não existe mais na profundidade requerida no passado. Não há se entoam mais os cânticos de despedida, as rezas de encomendação da alma, as ladainhas de adeus, as incelenças para a boa acolhida no mundo celestial.
Atualmente, a maioria dos velórios mais parece um encontro qualquer de pessoas que desde muito não se viam. O defunto é esquecido no meio da sala enquanto as conversas se prolongam, as piadas correm soltas, os sorrisos e as alegrias tomam conta do ambiente. Poucos são os choros ouvidos ou as lágrimas avistadas. O velório, pois, se tornou apenas numa oportunidade de encontro entre parentes e amigos, e não como ritual de pesarosa despedida.
As imposições do progresso, dos modismos e dos descasos humanos, ainda não se arvoraram totalmente da região sertaneja. Quanto mais distante for o sertão mais a morte é sentida, o defunto é respeitado e a despedida é mais sofrida. Assim acontece porque a vida ainda é tida como bem precioso, como dádiva divina, e será lamentado mesmo um falecido de idade bastante avançada.
Ainda hoje, basta que seja anunciada a morte de alguém e o sofrimento pode ser reconhecido em cada pessoa, principalmente naquelas de maior proximidade. As lágrimas ainda são verdadeiras, os desmaios também, bem como os choros incontidos, os gritos e lamentações incontidas. E logo velas são acesas entre preces de adeus.
Noutros tempos, quando as povoações eram formadas por núcleos familiares, compadres e conhecidos, e onde todo mundo conhecia todo mundo, a morte de alguém significava um pouco de perda em cada um. O sofrimento generalizava-se de tal modo que era difícil distinguir entre um familiar e um apenas conhecido. Também a força da religiosidade aprofundava ainda mais o sentimento perante aquele ato de chamamento divino.
Mas não somente após a morte se verificava tal conflagração sentimental e lamuriosa. O prolongamento de uma enfermidade de uma pessoa já a fazia cercada por cuidados especiais e visitas constantes de amigos. Estes sempre apareciam levando remédios caseiros, chás, ervas, e principalmente muitas orações e palavras de conforto. E não raro que muitos passassem as noites ao lado da cabeceira. Assim acontecia quando já se percebia que não havia mais cura.
Diante de um quadro irreversível, ou mesmo pela fragilidade de um corpo já muito enfermo e envelhecido, os últimos suspiros de vida eram dados na presença de muitos. O silêncio era entrecortado com choros velados, lágrimas que desciam parecendo gritar, corações tomados de aflições e faces sem poder disfarçar a dor e o sofrimento. E o instante final era acompanhado por uma exasperação incontida de gritos, gemidos, choros profundos e confissões lutuosas.
Dali em diante tudo ao redor parecia estar transformado. Não se falava noutra coisa senão sobre aquele infortúnio. As faces continuavam entristecidas, os olhos sempre chorosos, as vozes embargadas, a dor pulsante por todo lugar. As roupas deixavam de ser coloridas para ganhar tons escurecidos, enlutados. Muitos sequer varriam as casas após a morte nem permitiam que rádios ou vitrolas fossem ligados.
O velório era o mais autêntico possível, original no jeito de ser e de expressão do sentir. Flores do campo ao redor do defunto, a imagem do Senhor em cima de um pedestal, muitas velas acesas, choros e lamentos, lágrimas de conforto dirigidas aos familiares. Os homens de cabeça baixa e chapéu à mão reverenciando o defunto, as mulheres com vestes negras e até com véus também escuros encobrindo as cabeças.
Quando os homens se retiravam as mulheres faziam ecoar os mais tristes dos cantos fúnebres, os hinos sertanejos de despedida. E por aqueles descampados ecoavam vozes lamuriosamente cadenciadas, em rezas, sentinelas e ladainhas que mais pareciam lamentos chorosos cantados. O cenário tão triste se tornava ainda mais comovente com aqueles adeuses entoados pelas sofridas vozes sertanejas.
Depois o morto era levado pelos braços de amigos até o cemitério. Todos a pé, caminhando lentamente, sempre acompanhados dos cantos de despedida. E por muito tempo ainda o choro e a dor pela perda. Não só na face e no coração como no próprio vestir, eis que o luto fechado era respeitado por um ano inteiro. Tudo após um momento de dor, dando início às horas lamuriosas.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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