SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 12 de novembro de 2015

MISERERE


Rangel Alves da Costa*

                                                                                                     
Tende piedade, eis a tradução da expressão latina miserere. Um dos Salmos de David, precisamente o 51, se inicia com as palavras Miserere mei, Deus (Senhor tende piedade de mim): Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias. Lava-me completamente da minha iniquidade, e purifica-me do meu pecado. Porque eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim. Contra ti, contra ti somente pequei, e fiz o que é mal à tua vista, para que sejas justificado quando falares, e puro quando julgares...
Pela parte inicial do Salmo, logo se percebe um pedido de clemência divina ante as transgressões terrenas. Pecador, culpado, transgressor e temeroso quanto às consequências dos atos, só resta ao infrator dos mandamentos sagrados o pedido de misericórdia. Ora, o homem temente e que tem sua vida balizada pela fé e pela religiosidade, passa a se sentir um verdadeiro miserável ante o cometimento das impurezas terrenas. Daí o miserere, o pedido de perdão, a invocação do indulto celestial. Mas quando o miserere ou a compaixão não diz respeito à transgressão humana, mas pelos infortúnios da realidade da vida?
Em tal contexto, quando o sagrado deve ter compaixão pelos sofrimentos do homem perante sua existência, o miserere ganha a conotação de verdadeira miséria. E miséria é a tradução italiana para miserere. Tende misericórdia, Senhor, do homem na miséria no mundo, seria a expressão adequada. Ou ainda tirai da aflição este mundo que com sua miséria esvai cada vez mais o homem e a vida. Das misérias espalhadas no mundo é que ecoam os rogos pela indulgência divina. Eis que somente a força sagrada para minimizar o que se alastra como penúria e desesperança.
A miséria que se volta à compaixão possui muitas feições. O mundo, ao ser povoado por seres que renegam a própria existência e sobre o seu chão semeiam máculas e iniquidades, dimensionou a miséria de tal modo que o infortúnio passou a ser avistado em tudo e em todo lugar. Há a miséria da fome, da pobreza absoluta, da mendicância generalizada, da violência, da falta de serviços básicos à sobrevivência, da arrogância e submissão dos poderes e governantes, no trato do homem para com o homem, nos desnorteamentos aos princípios éticos e morais.
Há a miséria moral, da invirtude, da desonra. Por mais que se arvorem de poder e riqueza, miseráveis são todos aqueles que vivem somente para as coisas materiais. A miséria da ganância, da cobiça, da esperteza, da cegueira social, da injustiça. Misérias que nascem e se propagam intimamente, que vão se enraizando nos sentimentos e mais tarde desumanizam totalmente as pessoas. Em situações tais, as aparências são como frágeis véus que se desprenderão a qualquer instante. Mas antes disso as calamidades existenciais já estarão propagadas, pois não há nada mais mortificante que viver carregando a miserabilidade na alma.
Há que se indagar, contudo, se a miséria está sobre o mundo ou sobre o homem. Ou ainda se é a terra que se tornou estéril à prosperidade ou se foi o homem quem escolheu espalhar ervas daninhas onde vingavam os frutos. A verdade é que o mundo não se transforma sozinho, quase sempre sofrendo a ação humana para mudar de feição. E assim porque o homem faz, modifica, destrói, e depois deixa a miséria onde havia riqueza. Onde a mão do homem alcança nada mais será como antes. Foi pela mão do homem que a miséria do mundo foi sendo disseminada, mas como este sempre se esquiva na sua culpa, o que se tem é um miserável mundo sem que se reconheça um culpado.
Como num sopro do tempo, as misérias foram se espalhando por todo lugar. Os nativos, ao receberem os navegantes brancos com frutos e mel, com acolhida e respeito, jamais imaginaram estarem abrindo as portas às misérias da exploração, das doenças, das mortes, da dizimação de raças e nações inteiras. Os povos de mundos distantes, ao perceberem a chegada das legiões romanas e suas armaduras lustrosas, certamente não imaginavam que suas tribos e cidadelas seriam passadas a fio de espada. Assim também como todos os conquistadores de mundos novos, rapidamente transformando-os em mundos velhos, destroçados, pilhados, atormentados.
Daí que não há somente o miserere da carência, da pobreza, da desvalia na vida. Logicamente que a miséria é mais reconhecida onde um povo sequer se sustenta no dia a dia, onde se alimenta do barro da terra e qualquer grão é disputado com fúria e violência. Assim a miséria africana, a miséria de famílias inteiras sem presente nem futuro, com crianças esquálidas e famintas rastejando ou simplesmente caídas para a morte certa. Assim também nas distâncias nordestinas, nas palafitas ao redor das cidades, nos barrancos nas encostas dos morros.
A verdade é que as misérias da carência e da necessidade seriam combatidas ou minimizadas acaso houvesse desejo daqueles que detêm o poder. Aquelas pessoas que rastejam famintas e esmolam o pão da existência merecem o reconhecimento e a dignidade, pois não são miseráveis humanos. E muito podem ensinar sobre a humildade e o verdadeiro amor no coração.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: