SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 18 de outubro de 2015

SOBRE PÁSSAROS E TRENS


Rangel Alves da Costa*


Desde muito que não avistava um sabiá, um rouxinol, um bem-te-vi, um canário, uma fogo-pagô. Não se lembrava de quantos anos haviam passado desde que o colibri fez rasante sobre o caqueiro à janela e arribado sem voo de volta. Não havia mais flor. Somente o tempo para afastar da presença tudo aquilo que tanto se aprendeu a amar. Amava os pássaros, a natureza ao redor, os gorjeios e madrigais, aquela presença festiva.
Mas agora não avistava senão a paisagem nua e triste. Com a derrubada das árvores e o sumiço das copas altas e dos galhos para os ninhos, os pássaros se fizeram em revoada entardecer após entardecer. E não havia mais nenhum que despertasse a manhã com um trinado de paz e felicidade. E não havia mais nenhum que ultrapassasse a janela e fosse pousar na planta de plástico. Acostumada com a festa de tantos pássaros, havia se esquecido dos pardais com seus ninhos entre ripas e telhas, no alto da casa.
Os pardais, que geralmente são pouco considerados em meio a outros pássaros de plumagens coloridas e cantares sublimes, sempre dividiram aqueles espaços com os demais, mas somente com o desaparecimento dos outros é que saíram das sombras para a percepção. Contudo, principalmente pela sujeira que provocam dentro e nos arredores da moradia. Fazendo ninhos com o capim seco, de repente o chão estava tomado daqueles restos caídos do alto.
Ela abria a janela e começava a mirar o horizonte empoeirado lá fora. Não havia nada que trouxesse alguma alegria ao olhar ou que novamente despertasse a atenção pelas belezas da vida. Por isso mesmo que apenas olhava e quase nada enxergava. Apenas as cartas da ventania, os baús reabertos dos tempos de outrora, as ilusões entristecidas de tudo aquilo que agora lhe era impossível avistar. Daí que tanto fazia passar um boi voador como uma folha levada ao seu destino final.
Mas um dia, debruçada ali na janela perante o seu mundo sem mundo, de repente começou a avistar uma estação de trem. Não só o prédio rústico e nostálgico em si, mas também um trem apitando para partir enquanto outro fumaçava sua chegada. Tudo chegava com nitidez impressionante ao seu olhar: as paredes antigas, os assentos de madeira, um calendário pregado numa parede e um velho relógio noutra parede. Também um cachorro dormindo num canto e um buquê de flores estendido perto dos trilhos. Mas não avistava ninguém, qualquer pessoa que estivesse de partida ou chegando, ou mesmo esperando reencontrar alguém.
Sim, olhava ao longe e encontrava aquela velha estação. E mesmo ao longe podia enxergar o calendário, o relógio na parede, o buquê caído logo ao lado dos trilhos. Que doce e cruel ilusão do pensamento. Qualquer outra pessoa avistaria somente um velho casebre em ruínas, sem portas, sem telhado, caindo aos pedaços, e naquele local abandonado desde mais de dez anos. Mas ela agora avistava uma estação. E também divisava um trem partindo e outro chegando, a sua fumaça, o seu apito, os trilhos se perdendo em curvas num horizonte qualquer.
Enquanto avistava a estação surgiam outras imagens que somente a sua mente era capaz de revelar. Ela ali em pé na estação, toda bela de vestido rendado, com lenço e flores à mão, esperando alguém que jamais chegava. Assim que um trem apitava distante, ainda na curva da montanha, logo se apressava a retocar a leve base de pós sobre o rosto. Mas para depois tudo se molhar de lágrimas pela ausência. E assim o dia inteiro. Talvez aquele buquê fosse o seu, caído das mãos enquanto retornava tristonha.
Tinha certeza que aquele buquê era realmente o seu e precisava recuperá-lo antes que um trem passasse por cima de suas flores. Precisava daquele buquê para apagar a lembrança daquele encontro marcado e não acontecido. Colocaria flores novas sobre aqueles mesmos espinhos e depois retornaria à estação pronta para os abraços e beijos. E assim seguiu rumo à estação acompanhada por pássaros voejando ao redor. Sabiás, canários, colibris, pintassilgos...
Seguia pela estrada da alucinada imaginação enquanto os pardais lançavam sujeiras do alto da janela sobre sua cabeça. Havia um lenço molhado à mão, mas talvez ela imaginasse apenas flores novas para o buquê.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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