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domingo, 23 de agosto de 2015

UM CAIS DE JORGE AMADO


Rangel Alves da Costa*


As paisagens descritas por Jorge Amado são mistas de simplicidade e de ferocidade nas tramas que nelas se desenrolam. Não ferocidade de truculência ou barbárie, mas pela força e contundência dos personagens perante os seus mundos. Desse modo, em Jorge Amado a descrição de um terreiro de umbanda é entremeada de uma profunda simbologia. A simples citação de uma ladeira antiga traz consigo todo um contexto histórico de luta e de cotidiano sofrido de um povo negro marcado pelo açoite da cor.
Seus livros são muitos e neles as múltiplas descrições de paisagens, contextos e cenários. Contudo, nenhuma descrição surge sem um pano de fundo maior, forte, instigante. Aquelas terras inóspitas, medonhas, com veredas perigosas e cheias de jagunços, tocaias e emboscadas, simbolizam toda uma luta de homens destemidos enfrentando o perigo para demarcar suas terras cacaueiras, e que mais tarde frutificaram em poder e riqueza.
Do mesmo modo, um casarão de coronel cacaueiro não remete apenas à riqueza do homem, mas principalmente o poder político e econômico nascido da luta renhida pela terra e pelo confronto com desafetos de igual poder. O que pretende dizer é que da luta pela terra até a frutificação do cacau dourado foi sendo gestada toda a história da região cacaueira da Bahia, bem como a influência que os seus senhores passaram a ter nas cidades, nos centros urbanos e por todo lugar. Os coronéis e sua decisiva influência na história nordestina e brasileira.
Quando Jorge Amado cita cadeias imundas e delegados “pau mandado”, não se refere apenas a uma situação envolvendo uma trama. Há uma crítica explícita às muitas perseguições políticas ou meramente preconceituosas contra classes empobrecidas. Grita em favor dos negros perseguidos pela cor, pelo credo, pela própria desvalia da vida. Diz do sofrimento imposto aos pais, mães e filhos de santo, aos que optavam pela fé dos atabaques, dos agogôs e dos deuses africanos. Tudo isso foi magistralmente abordado por Jorge Amado nos seus cenários e personagens.
Os bordéis de Jorge Amado vão muito além de meros cabarés. Aliás, bordéis ganham status de centros de poder e de local de tomada de decisões dos coronéis que neles tinham assento e cama garantidos. Já os cabarés se voltam à descrição de situações miseráveis nos prostíbulos interioranos. As cafetinas famosas ou as balofas donas de casas da luz vermelha. Prostitutas falsamente importadas da França e raparigas novinhas enxotadas dos sertões e fazendo vida nas beiras de estradas ou nas imundícies das vilas raparigueiras. Nada mais que um reflexo da sociedade de então e que ainda hoje é avistada com quase a mesma feição.
O cenário do coronel cacaueiro, do jagunço e da tocaia, outro não é que o contexto histórico da formação de povoações através da luta e de muito sangue derramado. O cenário da violência contra os terreiros, da perseguição aos negros e pobres, da intolerância por razões políticas, outro não é senão uma crítica à forma como o preconceito tiranizava e aprisionava aos costumes ainda vigentes à época da escrita amadiana. O cenário da mulher sendo enxotada pela família e tendo que se prostituir para sobreviver, outro não é que aquele mesmo ainda avistado em muitos rincões nordestinos ou mesmo nos centros urbanos.
Contudo, há um cenário que reputo como o mais poético, ainda que também doloroso e triste, na obra amadiana. Em diversos livros Jorge Amado colocou o cais baiano como tela de fundo para o desenvolvimento de suas tramas. Assim acontece em Capitães da Areia, Jubiabá, A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água, Mar Morto, Os Velhos Marinheiros, Os Pastores da Noite e Suor, dentre outros. Em todos há um cheiro de mar, de maresia, um murmurejar de ondas batendo e voltando, barcos sendo avistados ao longe, velas acesas nas proximidades das águas, esperanças que vão e que vem, vidas que se fazem e se perdem na beira do cais. É este cais que tanto comove na obra de Jorge Amado.
O cais de Jorge Amado é cheio de mistério e magia, é povoado de pessoas e sonhos, é entremeado de esperanças e desilusões. É como se avistasse os barcos apinhados de cestos de frutas olorosas cortando as águas para as areias do cais. É como se avistasse os velhos pescadores, os viventes nos casebres ao redor remendando redes, limpando musgos das embarcações, lançando tarrafas ao entardecer, revirando mais um gole de cachaça. Próximo ao anoitecer e as mulheres aflitas em oração, lançando todos os rogos ao mar para que seus homens vençam as tempestades.
Também um cais de pedras solitárias e testemunhas de tantas vidas e tantas mortes. Cais onde os meninos de rua – os capitães da areia – se reúnem ao anoitecer depois das proezas do dia. Ali nas areias a cama, o travesseiro, a moradia na noite. Muitos sequer possuem ânimo para a capoeira, chorar suas mágoas, cheirar cola de sapateiro, fazer do vício um falso alento à dor. Tantos outros sequer acordam para a dor do dia seguinte. Ali mesmo são silenciados de vez pelas mãos ferozes que surgem nas noites sem lua.
Cais tão pujante e tão triste este de Jorge Amado. O mesmo cais onde as velas chamejam pelos orixás, flores são deixadas para Iemanjá das águas e os capitães da areia adormecem e despertam para a sorte do mundo.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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