SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sábado, 4 de julho de 2015

DO VISGO DO BARRO


Rangel Alves da Costa*


Do barro o homem, de barro a estrada, no barro a sobrevivência e o ofício modesto de um povo humilde.
“Os pés vão descalços cortando caminho. Mais longe um tantinho até chegar ao visgo marrom da terra no ribeirinho. Os olhos avistam o barro com carinho e logo as mãos vão acariciar aquele desalinho...”.
O barro em tudo. A casa levantada no barro, na ripa e no cipó, a cobertura de telha de barro cozido, o chão espalhando a terra barrenta e dura.
“Quando a chuva cai mais tarde a molhação se esvai. O fundo do barreiro a água retrai, pelo arredor o encharcado logo se contrai e o visgo visguento endurecendo vai...”.
Ofício nascido no aprendizado, vindo de geração após geração, o oleiro nasce para moldar o barro assim como o pássaro para a revoada.
“Mão de moldar o barro, mão de moldar o pão, colhe da terra seu fruto, faz do visgo seu grão. Barro batido e amolecido, virado e remexido, não demora e será servido ao poder da criação. Será panela ou tigela, pote ou boiada em magote, porrão ou cavalo de barro alazão?”.
Tantas vezes, desde a primeira raiz familiar, que o barro é tido como sustento. A bisavó moldava para vender na feirinha, a avó no mesmo ofício, e assim de pessoa a pessoa, e a cada tempo a mesma maestria em cada peça criada.
“Quando o barreiro endurece e nenhum molhado aparece, mesmo assim tudo acontece. Um pouco de água é lançado e fica tudo lamaçado, visguento e amaciado, esperando que a mão se lance com aptidão, sentimento e devoção”.
Do visgo do barro nasce tudo. As feiras interioranas conhecem bem sua importância na vida. Num tempo de cozinha sem luxo, com fogão de lenha e quase nada, qualquer comida existente cabe numa panela de barro. E até hoje se tem como incomparável o sabor do alimento preparado na fundura da argila.
“Vai Maria, vai João, vai o menino e o irmão. O ofício é de geração, com cada seguindo o de então, numa arte em comunhão. Enquanto um molda no barro a panela, outro apronta a tigela. Enquanto um faz um alguidar, o outro reinventa seu moldar. E moldando pela vida, fazendo do barro a sobrevida, todos na arte e na lida”.
Não há cozinha matuta que não tenha moringa, pote, porrão, alguidar, panela, bandeja, bicho de menino brincar, enfeite de colocar na mesinha, tudo feito no barro. O visgo do barro está tão presente na vida dessas famílias que muitos preferem continuar com a panela rachando, já carcomida pelo tempo, pelo fogo e pela fumaça, a ter um caldeirão novinho de alumínio.
“Mas não é fácil não. É preciso saber, é preciso ter coração. O barro não molda se faltar devoção, o barro não liga se for amassado ao desvão, o barro não toma for se não for de coração. Entre o oleiro e o barro existe uma tal comunhão que um vai sentindo o outro como se fosse irmão”.
Assim é a vida do visgo do barro, da vida na lama dando vida à arte, moldando o ofício de um povo que desde o amanhecer desce ao barreiro para a transformação.


Poeta e cronista
blohgrangel-sertao.blogspot.com

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