SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 28 de junho de 2015

TINGÓ, O JAGUNÇO


Rangel Alves da Costa*


“Num posso nem dizer que num mato. Vivo disso, ganho pra isso...”.
“Num sei nem quanta tocaia já fiz, quanta emboscada já preparei. E já derrubei mais de dez, disso eu tenho certeza...”.
“Vida desgraçada essa minha. O coroné meu patrão me paga pra derrubar inimigo, pra entregar aos urubu seus desafeto...”.
“Nem sei se todo mundo que matei merecia morrer. Tarvez nenhum. Num tenho nada com briga de gente grande, com encrenca dos outro, mai...”.
“Sei que meus óio já miraro muita gente inocente, muito pobe coitado que nem eu. Tomem sei que meu dedo já puxou gatio pa gente que num devia morrer...”.
“Nunca me esqueço quano o coroné mandou derrubar Véio Crimero. Mandou matar o pobe coitado só pruque o homi num quis vender seu pedacinho de terra pru doi vintém...”.
“Adespoi, achano pouco, enxotou a famia toda do defunto. Eu mermo fui duns que foi até a casinha véia ameaçar a coitada da viúva. Ou arribava dali ou todo mundo ia pa debaixo do chão...”.
“Marvadeza demais do coroné, bem sei. Mai o pior é que o poderoso num faz nada, só manda, só ordena. E quem acaba fazeno o seuviço de ameaça e morte é a jagunçada...”.
“Deus sabe o quanto me arrependo de ter entrado nessa vida. Juro pru Deus que num nasci pra essa vida não. Mai fazê o que nesse sertão que entrega ao home a mai triste sina?...”.
“Entrei nessa vida aina novo, e num faz munto tempo. Mai hoje já me sinto enveiecido demai, uma pessoa com o dobro da idade da que trago agora...”.
“Pru que assim? Munto faci de arresponder. A curpa cumeno o juízo, o arrependimento varejano pru dento, o remorso da peste num deixano nem dormir nem viver...”.
“Que ninguém diga que num sente assim pru que tá mentino. Já vi jagunço arrancar os própio miolo adespoi de endoidar de tanta mardade feita. O home parecia uma coisa do outo mundo...”.
“Quixabera, um dos maió jagunço que já pisou por aqui se acordou no meio da noite berrano. Adespoi deu pa andar de quato pé e desse jeito se meteu na mataria até sumir...”.
“Tarvez seja essa a sina de nóis todo, de todo que mata de mando, de tocaia, de emboscada. Tem gente que se acha valente demai, mai adespoi o esprito parece que fica cracomido e acaba na maió tristeza do mundo...”.
“Quem sou eu, meu Deus? Um nada, um zé-ninguém, um desgraçada de um matador de uma figa. Que home sou sem a arma na mão, sem a cartucheira empinhada pa mostrar valentia?”.
“Um covarde que sou, um desumano que sou, num sou mermo é nada. Triste daquele que pensar que tá fazeno bom negoço viver ganhano vintém pa fazer o sangue de gente de famia jorrar pelas estrada, nos caminhos desse mundão...”.
“Inté hoje, mermo já tenho feito tanta mardade, num tenho nada que seja meu. Num tenho casa, num tenho um pedaço de chão, nada. Nem famia eu tenho, só esse mundo que num é meu...”.
“Queria mermo era arribar daqui. Mai sei que é munto difici. Dessa vida só se sai fugino do mardito patrão. Se o coroné suber que quero deixar de ser jagunço entonce quem vai ser tocaiado sou eu. Sei disso. Assim já aconteceu com Vadão e Porqueirinha...”.
“Uma vez entrado nessa vida, o destino é viver com as mão suja de sangue inté o fim. Tem gente que enveiece jagunço e adespoi é abandonado como cachorro sarnento. Jagunço sem serventia num interessa a coroné argum...”.
“Num sei quantos ano tenho agora. Mai sei que já me sinto enveiecido pru dento. No dia que eu faiá a pontaria quem vai servir de comida de urubu sou eu...”.
“Mai num sei o que fazer não. Tarvez arribe daqui no escondido. Tarvez eu me junte aos home de outo coroné, o coroné Espaciano. Mai tudo a merma coisa. Tudo a merma vida de jagunço, de morte e sem futuro...”.
“Que Deus escute o que digo, se é que aina mereço ser ouvido. Mai se minha mão de sangue pudesse ser lavada em troca de sarvação, entonce agorinha mermo eu dava cabo de minha pórpia vida. Mai se que vou ter que morrer pa sofrer aina mai...”.
“E sofrimento aina pior dos que tanto já fiz calar o gemido com mai uma bala no meio da testa. Mai isso num é vida. Num sei o que é, mai isso num é vida...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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