SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 7 de maio de 2015

MOENDO CAFÉ, BATENDO PILÃO


Rangel Alves da Costa*


O simples ato de moer café carrega em si vastidão significativa. Não só a moenda triturando os grãos, mas a lembrança de tal processo como ofício de mãos rudes ou escravas no esforço repetitivo para o deleite saboroso de outros. E assim porque o café moído e torrado, após a cheirosa fervura no fogão de lenha, ia para os bules e xícaras daqueles que sequer sabiam o significado de um coador.
Mas não só nas casas-grandes o perfume do café torrado tomava os arredores do fogão e se espalhava pelos ares, adentrando as dependências e despertando os gostos. O aroma do café de moenda ou triturado em pilão sempre foi prazer socializado, vez que também nos casebres e casas empobrecidas seu olor poderoso e encantador teve presença constante. Ao menos para aquelas famílias que podiam adquirir um punhado de grãos e dispunham de um velho pilão nos fundos da casa.
Um velho pilão que rememora desde a sublime sobrevivência às durezas da vida escrava batendo a madeira para esfarelar a dor. A mão do pilão se deitando sobre o arroz de casca, sobre o grão duro do milho e do café, como se para separar o joio do trigo. De um lado a poeira levando restos carcomidos de vida, e de outro a peneira sacudindo o que restou de esperança. E o homem, desde o ontem de escravização tão indigna aos dias de hoje, sempre batendo o pilão, esmigalhando o grão para colher a sobrevivência.
O grão de café transformado em pó, e depois na bebida tão apreciada por todos, possui um si um mistério quase sempre desconhecido aos que simplesmente seguram na asa da xícara para leva-la à boca. O segredo se revela não no café como bebida de acompanhamento ou como estimulante, mas no seu aroma impregnado de história e de sacrifícios. O café embalado não possui nada disso, mas o café de pilão sim. Este é perfumado pelas belezas interioranas, pela simplicidade de um povo, e também pelo seu gole como o único pão da aurora ou do cair da noite.
Mas que cheiro maravilhoso, provocante, sedutor, é o de café torrado, preparado no fogão de lenha, tomado ainda quentinho e um tantinho adoçado. Cheiro de quintal, de cozinha, de fogão aceso, de amanhecer e entardecer, de vida interiorana, num sabor perfumado que continua se alastrando após a boca da noite. Mas também cheiro de nostalgia, de saudade dos tempos idos, de recordações estendidas nos alpendres e varandas da vida. Uma inusitada analogia, mas as relembranças singelas sempre chegam cheirando a café.
Basta imaginar o bule fervendo e pelas beiradas da tampa subindo a inebriante névoa morena, e me vejo envolvido naquele outrora tão diferente de agora. Surgem recordações sertanejas e também citadinas, ressurgem os idos naquele bucolismo de lua e sol, em meio à singeleza do humilde conterrâneo, e também as vivências na capital, quando esta ainda convivia com afetividade humana nas ruas de vizinhanças, nas famílias e relações amigueiras, e afazeres cotidianos.
Nunca avistei por aqui ninguém batendo café no pilão nem servindo a xícara irrecusável. Também não recordo ter sentido o cheiro oloroso se espalhando pelas vizinhanças e tornando mágico o entardecer. Com as facilidades do café em pacote quase ninguém mais quis ter o trabalho de bater o pilão. Mas recordo outro café sendo moído, levantado em peneira, despejado na chaleira e fervido na lenha de um passado de grata memória. A moagem do café ao pôr do sol, através do rádio. Apenas uma música, mas cujo nome fazia sempre relembrar alguém moendo café.
Já chegando ao entardecer, creio que a partir das cinco horas, meus pensamentos viajavam ao ouvir a música instrumental Moendo Café, de Poly e sua guitarra havaiana. Esta sempre presente no programa Ao Cair da Tarde, apresentado por Irandi Santos na Rádio Cultura de Sergipe. Um programa que marcou gerações e que hoje faz imensa falta aos amantes do rádio e a todos aqueles apreciadores de uma programação radiofônica verdadeiramente voltada ao deleite espiritual do ouvinte.
Ao Cair da Tarde era o mais perfumado bálsamo depois do correr do dia. E Irandi Santos, com sua voz inconfundível, de suavidade poética e alentadora, proporcionava inigualável expressividade àquele momento de transição crepuscular. Como dizia o locutor, a você querido ouvinte, que agora está no recanto sacrossanto do seu lar, mais uma linda página do nosso cancioneiro popular. E belíssimas canções eram ouvidas naqueles belos idos do rádio sergipano. E às seis horas da noite, nesse relógio melodioso do tempo, A Crônica da Ave Maria, “uma página da Professora Lindalva Cardoso Dantas”.
Mas o café de pilão era mesmo servido por Manoel Silva no seu programa Crepúsculo Sertanejo, na Rádio Jornal. Após o entardecer o saudoso radialista transformava todo o estado num manto interiorano e transmudava todos os corações em sentimentos sertanejos. E do rádio parecia sair o cheiro bom do cuscuz ralado, o som da bicharada se recolhendo aos currais, o aboio do vaqueiro nas distâncias matutas. E aquele inconfundível cheiro de café torrado.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Sidnea Barbosa Flores disse...

Seu texto é um poema!É preciso ter as raízes no sertão para compreender tanta beleza! Lindo!
Abraços