SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

SERTÃO SERTANEJO


Rangel Alves da Costa*


Tornou-se verdadeira raridade encontrar um autêntico sertanejo, caboclo de chão e raiz, homem cheirando a terra e sol. Mesmo nos rincões mais distantes, onde se presume que as transformações e os modismos ainda não apareceram para o desnorteamento de tudo, já não é mais fácil encontrar o homem da terra preservando suas características, costumes, tradições e cotidianos cheios de singeleza e simplicidade.
O sertão em si está todo mudado. Foi-se o tempo de se avistar carroças de burros, carros-de-bois com animais sob a canga, jumentos e jegues cortando veredas levando caçuás nos seus lombos. O animal de montaria foi esquecido no pasto, trocado que foi pela motocicleta. Rarearam-se as vaquejadas, as pega-de-bois, os aboios e toadas sertões adentro. Também o homem não mais trabalha na terra como antigamente, plantando milho, mandioca, feijão, melancia e abóbora para sobreviver. Quase tudo é adquirido na feira ou supermercado.
As moradias e as pessoas também encurtaram suas distâncias, tanto pela moto como pelo uso indistinto do telefone celular. Os velhos amigos já não se dispõem a caminhar para os encontros e proseados debaixo das grandes árvores. Com energia elétrica em quase todo lugar, as casinholas são iluminadas desde o cair da noite e a televisão acaba chamando a atenção do mais novo ao mais velho.
Água de pote e moringa praticamente não existe mais, muito menos colocar a quartinha na janela para que o açoite do vento refresque o barro e o líquido. Por conta da televisão, geralmente a noite cai e a beleza do seu instante é totalmente esquecida pelo sertanejo. Ninguém fica mais do lado de fora para se refrescar, ouvir os sons da natureza ou apreciar a magia daquele luar imenso se derramando pelas vastidões.
Muito difícil encontrar fogão de lenha ou de trempe, plantas medicinais espalhadas pelos quintais. Aliás, os quintais, de tanta importância na vida interiorana, perderam sua existência. Nas cidades, logo o muro toma o lugar da cerca de madeira, e o cimento grosso engole toda raiz da terra. E na área rural, onde os quintais praticamente se confundiam com a mataria, agora difícil encontrar o ciscado das galinhas e as marcas de outros animais domésticos.
Recordo de ter visitado tanto a casinha de barro, erguida no sopapo da argila fincada no pau entrelaçado de cipó, como aquelas outras de outra maior sustança, e estas contando até com porta de madeira e alpendre. E também outras no tijolo avermelhada de olaria, mais de três dependências e quatro águas para garantir sombreado em todos os lados. Naquele tempo, tais divisões também serviam como percepção do poder de renda familiar, fazendo conhecer aqueles que eram mais empobrecidos ou “remediados”.
Pela feição da moradia, desde a malhada à porta e janela, não era difícil saber o que poderia ser encontrado lá dentro. A pobreza se apresenta desolada desde o velho carro de bois abandonado debaixo do umbuzeiro ao que se mostra no interior das residências. Ainda que o homem da terra jamais se apresente com feição sofrida diante da situação, a pobreza não pode ser negada perante o fogão sem panela e a ausência de quase tudo que deveria guarnecer um lar.
Em outras localidades ainda era possível encontrar móveis antigos de madeira de lei, cristaleiras, alguma louça e um jarro com flores de plástico sobre a mesa. Tais móveis não significavam, contudo, qualquer ostentação. Hoje raramente são encontrados, mas noutros tempos até mesmo as residências pobres possuíam cristaleiras, oratórios, tudo feito em madeira de lei da própria região. Tais objetos sumiram quando visitantes começaram a pagar qualquer ninharia por uma relíquia familiar e revendê-la na cidade a preço alto.
Contudo, em quaisquer das residências havia objetos que faziam parte da própria vida do sertanejo. Grãos e sementes guardados em cuias, candeeiros e lamparinas à espera do anoitecer, selas e arreios e demais objetos do lide do homem, feixes de lenha no quintal, cestos e caçuás, aiós e embornais, a imagem de santos pelas paredes e um céu nos oratórios e cantos de quartos. E também, quando em tempo promissor, o bolo de macaxeira, o doce de leite, a coalhada, o queijo, a melancia e o melão de roça. Quanta saudade do cuscuz ralado e do café cheiroso batido em pilão.
Mas ainda guardo na memória aquele jeito tão autêntico de viver e ser sertanejo. O homem que amanhece antes do canto do galo e logo após a primeira prece já está olhando em direção à barra na esperança de chuva. Toma um gole de café com farinha seca e uma perna de preá e se prepara para a luta. Dependendo do ofício do dia, deita de lado o aió, carrega no ombro a foice e a enxada, ou sela o cavalo para arribar no mundo. Após a cancela os caminhos da sobrevivência, ou por ali mesmo o juntar toco, fazer roçagem, levantar cerca.
O dia vai terminando mais cedo para o homem de tanta lauta em tanto sol. Já está de retorno antes das sombras da noite. Depois da cuia d’água sobre o corpo a xícara de café ou a dose de pinga. Sempre do lado de fora, leva o radinho para ouvir o violar caipira ou ele mesmo levanta a voz para um aboio dolente. Mais uma vez mira o horizonte em busca de sinal de chuva. Mas avista apenas a lua branca que vem surgindo. Tão bela como o sertão, ainda que sofrido demais após o amanhecer.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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