SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 11 de janeiro de 2015

COURO DE SENZALA


Rangel Alves da Costa*


“A fumaça subindo, pelo ar a fetidez de couro queimado. O braseiro nas costas, corroendo as entranhas, dilacerando a vida. Os gritos se perdem ao desvão. Roucos, toscos, são os rogos daqueles que têm o seu couro esturricado pelo ferro em brasa, pela lâmina incandescente. E tudo isso porque pensou que era homem e que era livre, ao menos para viver em fuga”.
De couro é a vida e a morte. A pele do bicho, a pele do homem. Couro curtido, couro enrijecido, couro amolecido, couro ferido. E também a pele lanhada pelo couro impiedoso da chibata e do açoite.
O couro é o lombo, é o tecido que recobre o homem, o manto de aquecimento e proteção dos animais. Mas o couro no couro, a chibata na pele, contradiz a vida, contradiz todo ser, pela selvageria da cria na criatura.
No animal e no homem, o couro ferido faz sangrar, faz gemer. E depois morrer, lentamente, com a pele se abrindo em chagas, tomada de pruridos e bichos, ao desvão do nada no nada que já é.
“No meio da senzala, ao redor do tronco, a podridão do mundo se mistura ao mau cheiro alastrado de tudo. O chão encharcado de sangue velho, duro, lamacento, tornado barro debaixo do sol. E tudo partindo do tronco imenso, de madeira de lei enegrecida pelo tempo e pelo escorrimento das dores e sofrimentos. Para a impiedosa madeira o negro era levado arrastado, acorrentado ou na força da chibata ou da pontada ferindo a pele. E depois devidamente amarrado com as costas nuas para que a pele se abrisse e o sangue jorrasse. E o couro cru descia feroz, voraz, sedento de sangue. Cada pancada um grito silencioso, cada silêncio uma mortificação. E de repente as costas escravas, já marcadas pelos castigos constantes, se tornavam carne viva, pulsante, sangrando. E o chão ia bebendo daquela dor incontida e o ar se enchendo ainda mais daquele torturante cheiro de morte”.
O artesão faz do couro aquilo que bem entender. É seu ofício transformar a pele do animal em utilidades para o homem, para a vida e os próprios animais. Daí surgirem as selas, os arreios, as botas, as alpercatas, os aiós, os embornais, os chapéus de couro. Eis uma arte digna ao homem. Mas outro homem existia que era lobo do próprio homem, algoz de seu semelhante. Este fazia do couro negro, da pele escrava, a mais indigna das ações: chicotear até lanhar a pele, abrir o couro e fazer jorrar o sangue. Por quê?
“Negro não foge do meu engenho. Nenhum negro safado arreda pé de minha senzala. Vá atrás do bicho, procure nas distâncias, cate em cada canto, em cada tufo de mato e em cada gruta de pedra, mas quero o fujão aqui antes do sol se esconder. Mas depois de capturado e severamente punido, ainda tem de ser amarrado no tronco e açoitado até se esvair em sangue. Assim há de ser para servir de exemplo aos outros negros. E do mais velho ao mais novo, que todos estejam na plateia assistindo o açoitamento. E quero que açoite com tamanha força que o sangue jorrado respingue nos pés da negrada. E depois do couro lanhado, se ainda vida restar no infame, que um balde de salmoura seja derramado na sua cabeça. Então a dor sequer terá voz para gritar. Faça o que eu disse. Vá logo atrás desse negro fujão”.
O açoite da chibata não dói nem na taca de couro cru nem no algoz que desce sua covardia no lombo nu do escravo. E muito menos pesa na consciência do senhor de engenho que ordena o açoitamento. Mas não somente o escravo sentia a dor da crueldade tomando todo o seu ser, torturando suas entranhas. Até hoje se ouve os gritos e os últimos gemidos de morte. E assim tantos e mais tantos, negros ou de qualquer cor, continuam sentindo na pele o dilacerante coice da chibata.
“Uma chicotada, uma chibatada, um açoite, uma surra. Um chicote de couro, uma chibata trabalhada em nós, uma tira de couro envolta em ferros pontudos, uma corrente enferrujada pelo banho de sangue de tantos usos. Um homem, um ser humano, tratado como bicho apenas por ser negro, pela sua cor e descendência. Um escravo, um subjugado, um submetido ao tormento e a indignidade. Um corpo negro, uma pele suada da luta e lanhada pelos castigos, uma costa nua para que o dito civilizado deite sobre ela sua ira sem fim. E apenas porque, não suportando mais tanto sofrimento, o negro imaginou ser mais digno viver como bicho entre os animais da floresta. Era um tipo de liberdade sonhada”.
O que diz a história sobre tudo isso? Quase tudo, mas nada que servisse como lição para além e depois. O negro foi libertado da senzala, mas não dos olhos e sentimentos de muitos. Aqueles gritos de dor ainda ecoam no tempo presente, porém poucos escutam seus rogos. E como se o passado não pertencesse somente ao passado, trazem à vil consciência que o tronco da senzala ainda não foi arrancado e pode ter serventia E por isso erguem os braços para baixar o açoite em qualquer oprimido.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

Nenhum comentário: