Rangel Alves da Costa*
A vida é bela, dizia Totonha de Manezinho. A
vida ainda é bela, corrigia a doceira Filomena. Não, não, nada disso. Nem
perfeita nem perto da perfeição. Tudo assim mesmo, mas de outro modo, como
explicarei. Era o poeta Alfredinho que chegava com sua flor na lapela e cheio
de palavras pomposas e incompreensíveis para a maioria da gente do lugar.
Mas se viu sozinho ao dar início à sua
explanação sobre a vida, pois Totonha e Filomena já estavam pelos arredores
falando sobre a vida dos outros. Coisa, aliás, que discerniam com a maior facilidade
do mundo. Sobre a vida sabiam tudo, mas somente a dos outros, vez que não havia
nada que não chegasse às suas bocas, e destas aos ouvidos em segredo. E de
repente a conversa já tinha virado a esquina, chegado aos bancos das praças,
tomado uma feição pavorosa.
O poeta Alfredinho sentia verdadeiro asco por
gente assim, e havia ido ali perante as duas exatamente para se inteirar de
algumas maldades que haviam lhe chegado ao ouvido e ferido a sua honra e sua
inspiração. Ora, mas quem já se viu alguém andar espalhando que ele, um bardo
amigo do Olimpo, agora ser tido e havido como o poeta dos floreios para
mulheres casadas. E que arremessava versos adocicados pelas janelas. Só podia
ser coisa de Totonha e Filomena, e por isso mesmo havia ido até ali para passar
uma boa descompostura nas duas fofoqueiras. Contudo, foi surpreendido com a
história da vida ao chegar. E se empolgou para entrar na conversa.
Mas sem perceber que estava sozinho, pois de
costas para onde haviam estado as duas mexeriqueiras, o poeta falava com ênfase
e postura de orador no alto da montanha: Ora, dizeis que a vida é bela, e
também dizeis que a vida ainda é bela. Palavras que se aproximam e abrem um
fosso de compreensão. Se é bela é porque assim se apresenta no momento. Se
ainda é bela é porque ainda é, mas está deixando de ser. Certa feita um sábio
enlouqueceu pensando em tal questão, mas não perderei o juízo diante da
realidade. E assim porque logo sentencio: a vida é bela, mas não é bela!
E continuou: Mas não tomai por espanto minhas
palavras. Não contradigo o meu pensamento. Ao afirmar que a vida é bela e não é
bela, simplesmente digo que ela, a vida, possui duas feições numa só face.
Numa, onde está sua beleza, não pode ser avistada senão pelo sentimento, pelos
olhos de sua compreensão, pela certeza do quanto dispomos porque nos foi
permitido viver. Noutra, onde não se mostra com qualquer beleza, nada mais se
avista que não os frutos daquilo que é semeado pelo próprio homem. Ora, o belo,
a beleza, todo o encanto da vida, acaba sendo maculado pelo próprio homem. E
não é sequer recomendável para as futuras gerações essa vida deteriorada,
desregrada, tão feia e deprimente.
Sua empolgação parecia desmedida: Dizei-me,
vocês duas, se não tenho razão. Não é tão bela essa vida que é lar da natureza,
das belezas da criação, dos pássaros, da humildade, dos homens de bom coração,
da comunhão e da fraternidade? E não é igualmente bela essa vida cuja beleza é
deturpada pelos olhos que não sabem valorizar sua pintura. Ora, nem a mais bela
pintura do artista mais famoso terá beleza alguma diante do olhar que cega para
as maravilhas. E assim acontece com a vida. Esta não pode ser reconhecida na
sua pujança por aquele que simplesmente a macula e a destrói. Não significa que
a vida não continue bela, mas sua beleza não é fruída por aquele que a trata
com desdém.
Prosseguia: Mas vocês duas certamente são
daqueles espécimes que avistam a beleza da vida e ainda assim tudo fazem para
decliná-la à feiura. Olhos e bocas malditas as vossas. E amaldiçoadas sejam
vossas insinuações maldosas imundas que me têm com um depravado, um reles e
chinfrim poeta que tece floreios apaixonados por mulheres casadas, não é mesmo?
Virou-se para dizer mais, porém ninguém mais encontrou para ouvi-lo. As duas
estavam do lado de fora dando conta de quem passava, ou de quem não estava nem
por ali.
Totonha dizia que a vida é bela porque todo
mundo fica sabendo da vida de todo mundo. Mas Filomena mais uma vez lhe
corrigiu: A vida ainda é bela. E ainda porque no dia que todo mundo ficar sabendo
que a gente fala da vida de todo mundo, então se prepare pro fim do mundo.
Poeta e cronista
blograngel-sertao,blogspot.com
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