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quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A VIDA É MEMÓRIA DE TUDO

Rangel Alves da Costa*


A vida é memória de tudo. Do presente adiante tudo será escrito, mas o segundo atrás já faz parte das páginas do seu grande livro. Contudo, muito já foi vivenciado há tanto tempo, desde os primórdios aos amarelados das fotografias, que necessita ser rebuscado por alguém que dê a devida importância àqueles percursos, costumes e modos de existência. Daí a importância do memorialismo e do memorialista, pois sem essa busca o passado das cidades, das pessoas e das instituições, muito seria relegado ao esquecimento.
Não faz muito tempo que li um texto onde um jornalista e poeta sergipano se reportava aos memorialistas como pessoas que se despem da realidade e vão abrindo suas sepulturas a partir de seus escritos saudosistas e enfadonhos. Que pensamento infeliz e desprezível. E cita ainda que um texto que começa com algo assim como “no meu tempo” é clara demonstração de uma saudade idiota do passado, preliminar da escrita que desnecessariamente vai remexer em baús adormecidos. Mas que lástima pensar assim!
Por mais que se queira esquecer ou negar o passado, a verdade é que ninguém pode mais apagar os passos caminhados. O ser humano é histórico, fruto do passado, de raízes e linhagens. O sobrenome que se ostenta agora é de construção antiga, de uma confluência de gerações outras que não podem ser renegadas. O agora é somente um instante, mas inexistente sem o suporte do anteriormente acontecido. Tudo que se tem hoje é apenas uma construção do ontem. Então, por que não reverenciar a memória, as recordações, as feições passadas?
Não sou velho nem novo, tenho dez, mil anos, tanto faz. Reverencio o passado como o que há de melhor e o tenho como percurso e lição, e por isso mesmo sinto ser tão necessário rebuscá-lo como avistar e compreender o presente. Ademais, é lá atrás onde estão as raízes, as linhagens, as heranças, e tudo que timidamente foi dando causa ao que somos e temos agora. Então por que desprezá-las?
Tenho o memorialismo como estética da memória, como forjamento no ferro daquilo que não pode ser esquecido, como o cinzelar na madeira o que de melhor foi vivenciado e construído, mesmo que o retratado seja de um tempo muito distante. Por consequência, tenho o memorialista como o grande artesão da história, aquele que preserva nas letras e nas imagens os espelhos de vidas e ações que jamais deverão deixar de refletir sobre os tempos.
A escrita memorialista, como o termo logo deixa transparecer, se volta ao passado para trazer a lume os feitos, as proezas, as histórias, as vivências, os caminhos de antigamente. E não precisa ser de um tempo muito distante, pois até mesmo o passado recente precisa ser preservado na escrita e na imagem. O ontem envelhecerá de tal modo que mais tarde tenderá ser expurgado como algo inexistente. E cabe ao memorialismo não deixar que isso aconteça.
Assim, o que é o memorialista senão o cultor da memória própria, individual ou coletiva; aquele toma a si a incumbência de conservar, preservar, reter para o conhecimento presente e para a posteridade os conhecimentos adquiridos anteriormente. E a vida, a sociedade, o mundo, tudo seria apenas um livro em branco sem nada que conservasse o relato dos feitos, as realizações, as raízes de um povo.
Basta olhar o passado, e tudo é memória. As artes, os monumentos, os museus, a literatura, os retratos, tudo é memória. Não são apenas as guerras, as vitórias, as revoluções, as descobertas, os grandes feitos que devam ficar preservadas na memória coletiva, mas também os feitos familiares, as conquistas pessoais, as realizações de cada um. Ora, se uma biografia não interessa a uns, a outros certamente interessará.
Daí ser inadmissível que um texto se reporte ao memorialismo e aos memorialistas com negativismos e menosprezos. Nada é construído de agora, se antes não brotar de raiz. Por isso, em tudo o passado, a memória, que aceite que seja assim ou não. Ademais, não foram poucos os escritores que alçaram fama tendo as memórias como características maiores de seus escritos.
Para citar alguns, não se pode deixar de reconhecer os escritos memorialistas de José Lins do Rêgo (Meus verdes anos, Menino de Engenho), Visconde de Taunay (Memórias) Pedro Nava (Baú de Ossos, Chão de Ferro), Joaquim Nabuco (Minha Formação), Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere). E mais recentemente Marcelo Rubens Paiva (Feliz Ano Velho) e Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro?). E quem haverá de dizer que tais obras não são importantíssimas para o conhecimento da nossa história e nossa formação?
Jorge Amado, o maior romancista brasileiro, não deixou de ser também um exímio memorialista. Seus livros são marcados por suas lembranças e recordações de sua infância nas terras cacaueiras, nas andanças pelos sertões sergipano e baiano, na sua vida de menino grapiúna. Nos seus livros os retratos escritos, as imagens dos acontecimentos, os reencontros com o que as gerações atuais nem imaginariam de ter realmente existido.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com    

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