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quinta-feira, 10 de julho de 2014

CARTA DE ALFORRIA


Rangel Alves da Costa*


Depois de tantos anos e de tantas alforrias supostamente concedidas, e somente Deus para saber acerca das reais intencionalidades nas concessões e das tramas forjadas para que as portas da liberdade fossem abertas, ainda precisamos de uma nova e verdadeira Carta de Alforria. Não bastou libertar do jugo, da dolorosa submissão e da chibata, eis que urgentemente necessitamos daquelas liberdades mais amplas que nos continuam sendo negadas.
No século XX, as cartas de alforria possibilitaram aos escravos a obtenção da liberdade, ainda que muitas vezes continuassem escravizados até que pagassem o preço total do documento libertador outorgado pelo seu senhor. Desse modo, alforria era o ato pelo qual o proprietário de escravos concedia-lhes a liberdade, por reconhecimento ou com exigência de contrapartida. E a Carta de Alforria o documento comprobatório da abdicação do direito de propriedade do senhor sobre seu escravo.
Neste mundo novo, de tantas e tão apregoadas democracias e quebra de grilhões, continuamos submetidos, escravizados e subjugados pelos senhores da vida e seus algozes, e que são todos aqueles que nos negam a certeza da ampla e irrestrita liberdade. E liberdade não apenas no direito de ir e vir, de manifestação do pensamento, de não temer expressar críticas e indignações, de não ter olhos e mãos para censurar as livres iniciativas.
E assim porque o conceito de liberdade é muito mais amplo que aquilo geralmente apregoado. Manifesta-se no direito que o indivíduo possui para agir segundo seu livre-arbítrio, em respeito aos próprios anseios. O desejo humano, como algo individual e intimista, deve sempre ser respeitado pelos demais. É preceito constitucional nas principais cartas políticas modernas e como tal se baseia na ideia de que a expressão humana deve estar livre de qualquer aparato inibidor. Contudo, um direito sempre relativo, eis que as leis também cuidam das limitações às liberdades.
De acordo com a Declaração Universal de Direitos Humanos, a liberdade é algo inato ao ser humano, não podendo ser separada da própria condição de existência, considerando-se principalmente que todos os indivíduos nascem livres e não podem nem devem ter suas ações antecipadamente julgadas. Assim, nenhum aspecto de sua existência pode ser determinado por outro. A liberdade é então a capacidade que tem o sujeito humano para decidir sobre si mesmo e livremente expressar suas crenças, valores, pensamentos e ideologias.
Contudo, por mais que se pretenda ter a liberdade como condição máxima do homem, verdadeiramente resta pouco espaço para que a mesma possa se manifestar de modo seguro. A expressão “desde que não ofenda direito de outro” é o primeiro balizamento restritivo, e daí converge uma séria de limitações e proibições que tornam o direito à liberdade numa camisa de força. Ter liberdade, porém sem ofender direito de outrem, implica em ação que pode ser censurada não só por outra pessoa, mas principalmente pelas instituições. E estas, no combate ao supostos exageros da liberdade, agem com mão de ferro e amparadas pela lei.
Na verdade, é a lei que macula a noção de liberdade. Logicamente que o indivíduo não possui livre-arbítrio ilimitado para expressar sua vocação de homem livre, e assim deve ser em respeito ao direito alheio, que também possui liberdade de não ser ofendido. Mas a lei interfere de tal modo que a ação humana torna-se circunscrita àquilo que não é proibido e não é ilegal. Quer dizer, a liberdade é sempre vigiada, combatida, pressionada, julgada e quase sempre proibida quando os manifestos de indignações confrontam os interesses do poder.
Não se defende aqui que a liberdade seja caminho para badernas, vandalismos, ataques gratuitos às honras alheias, ameaças aos poderes instituídos. Também não se defende aqui que a liberdade seja ilimitada sob a justificativa de ser um direito intrínseco ao ser humano. Ora, toda a sociedade precisa ser mantida na ordem e em obediência a um estado de direito, mas não se deve aceitar que o judiciário e os governantes, através de seus agentes repressores, pretendam se imiscuir de tal modo que o conceito de liberdade perca toda e qualquer eficácia social.
Daí precisarmos urgentemente de uma nova Carta de Alforria que não somente nos garanta que os retrocessos então verificados não signifiquem uma nova forma de escravização social, como também um salvo conduto para que o homem possa agir sem imposições de amarras. E possa livremente agir sem que as leis sejam intencionalmente transgredidas para lhe prejudicar.
E também uma Carta de Alforria que garanta uma liberdade com respeito dos governantes, que não seja proibido ao indivíduo ficar doente por falta de médico, que não seja proibido ao sujeito estudar em escola pública de qualidade e ter uma educação verdadeiramente para o alcance das grandes liberdades. Não adianta alforriar e manter o liberto no desemprego e na eterna submissão às esmolas governamentais. Alforria que conduza à plena libertação através do trabalho digno, não para manter a pobreza no jugo da escravização eleitoral.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

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