SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 10 de junho de 2014

A AUSÊNCIA


Rangel Alves da Costa*


Amigo de muito tempo, desde a infância ao passar dos anos, acostumado a visitá-lo ao menos uma vez no mês, dessa feita foi surpreendido com algo totalmente inesperado. Nunca lhe passou pela cabeça que algo assim algum pudesse acontecer. E por isso até imaginou estar com algum problema mental. Indagou-se se estava doido. Mas depois achou por bem acreditar que quem estava doido era o outro, o amigo.
Eis que chamou no portão e foi prontamente atendido pelo amigo. Mas logo pressentiu algo diferente. Não havia nenhum sorriso, nenhuma feição de alegria, nenhum cumprimento, absolutamente nada daquilo que costumeiramente encontrava. Apenas uma pessoa com sua frieza, como um estranho que abre a porta e vem ao portão atender a um desconhecido. Mas o que está acontecendo? Foi o que intimamente se perguntou.
Resolveu relevar a falta de acolhida e em seguida, mostrando-se sorridente, perguntou como estava o velho e bom amigo. Este simplesmente respondeu: Por acaso o senhor me conhece? Talvez o senhor esteja procurando outra casa e outra pessoa. E tenho certeza que esta pessoa não é eu, pois não recordo de jamais tê-lo visto. Desculpe, mas bateu no portão errado.
Espanto absoluto no visitante. Sentiu-se como se estivesse sendo esbofeteado e ao menos tempo jogado nas profundezas de um rio gelado. Mas não se deu por vencido e insistiu: Sempre brincalhão, hein amigo? Em qualquer lugar do mundo que o avistasse ao longe logo reconheceria o velho companheiro de sonhos e de lutas, o sempre inteligente Josué. Só falta agora dizer que não está reconhecendo o amigo Paulo, o poeta nas noites de insônia...
E o outro respondeu, aumentando ainda mais a incompreensão daquela realidade: Sim, sou Josué e conheço alguém com nome Paulo e que é poeta. Por sinal escreve muito bem quando está bêbado. Essa coisa de insônia é desculpa de quem vira a noite pensando que a garrafa de vodka é a lua. Sim, sou Josué e se você for mesmo Paulo, o poeta, diga a Paulo amigo de Josué que ele não está...
Agora embananou tudo, disse o visitante a si mesmo. Mas não desistiu e prosseguiu: Desculpe Josué, mas não estou entendendo. Você se reconhece como Josué, diz que é Josué, mas depois afirma que você mesmo não está. Afinal, que é este que está à minha frente se não for você mesmo, Josué?
Agora mais calmo, com feição serena e tranquila, o dono da casa respondeu: Está certo. Reconheço seu argumento e sei que você é mesmo Paulo, amigo de Josué. Agora preciso que escute uma coisa. Eu sou realmente Paulo, só que eu não estou aqui. Esse aqui que vos fala é alguém que quem tem o meu corpo, o meu nome, a minha feição, tudo de mim, mas eu, eu mesmo, não estou aqui. Está entendendo?
Não! E não porque não posso compreender uma história sem pé nem cabeça, uma verdadeira maluquice. Ora, se você é Josué, então é Josué e pronto. Retrucou o visitante, já ficando nervoso. E ouviu em seguida:
Mas Paulo, não se assuste. Não está diante de um fantasma nem de um extraterrestre. Está verdadeiramente diante de Josué. Só quero que você entenda que este que está aqui é o Josué corporal, presencial ou físico, pois o Josué espiritual, psicológico e mental não está aqui, está ausente.
E o vistante prontamente perguntou: Então, onde posso encontrar o Josué espiritual, psicológico e mental, como você diz? Creio que eu me entenderia bem melhor com ele. Sabe onde ele está?
E o dono da casa respondeu: Ele está aqui comigo, pois sou Josué, mas também está ausente. Ouça uma coisa, amigo Paulo: O Josué que está ausente está aqui, e sou eu. Mas as pessoas precisam compreender que os amigos também ficam tristes, angustiados, saudosos e carregados de sofrimento. E por isso mesmo precisam se distanciar, ficar ausentes para meditar e refletir acerca de sua condição humana. E por ser amigo, não deseja que os amigos também tenham de suportar sua dor. Por isso estou aqui. Mas, por favor, compreenda minha distância.
Plenamente agradecido pelas palavras, Paulo se despediu desejando boa sorte. Retornando, meditou em cada passo e chegou à seguinte conclusão: Também deixarei uma parte de mim ausente sempre que eu tenha feridas íntimas para curar. Não transmitirei a ninguém minhas dores nem desejarei que os amigos tenham de suportar meus sofrimentos, angústias, desilusões...


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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