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terça-feira, 22 de abril de 2014

NOSSOS ABISMOS E NOSSAS SUPERFÍCIES


Rangel Alves da Costa*


Parecemos viver nos limites desejáveis, mas quase sempre estamos nos abismos e nas superfícies. E tudo ou tão profundo ou tão aparente.
Abismos fazem pensar em profundezas, precipícios, buracos, escuridão. Mas também grandes dificuldades, ruínas e caos. E ainda as trevas que assombram os seres.
Por sua vez, superfícies implicam pensar nas partes visíveis e exteriores dos corpos, naquilo que se apresenta externamente. Diz-se daquilo que está por cima de algo, daquilo que se pode ver. O que está apenas aparente se mostra superficialmente.
E por que, ainda que permanecendo nos limites, também estamos nas superfícies e nos abismos? Ora, quanto às profundezas, simplesmente porque não nos distanciamos de nossas culpas, nossos medos, nosso doloroso passado.
E quanto às nossas aparências exteriores, simplesmente porque tudo fazemos para demonstrar situações que nos tornem distantes ou esquecidos dos abismos, aparentemente resolvidos e com semblantes que expressem estados de felicidade e encorajamento.
A pessoa tudo faz para ultrapassar seu limite e tornar visível apenas aquilo que seja enxergado positivamente pelo outro. Por isso aparenta contentamento, tranquilidade, paz de espírito, comunhão com o que há de melhor na vida.
E sorri, e canta, e dança, e parece querer voar. Ainda que não tenha motivos para estar assim ou agir assim, tudo faz para repassar uma imagem de superfície positiva e cheia de exultação.
Mas terá validade uma superfície assim, apenas aparente, quando internamente, nas profundezas do ser, tudo se mostra diferente, medonho, destruidor? Contudo, impossível que os abismos estejam tomando o lugar da aparência. A pessoa sabe que está mentindo para si mesma.
Mas então surge outra questão: Mesmo reconhecendo seus abismos, suas lástimas interiores, deverá a pessoa optar por abdicar do fingimento bom, que ao menos lhe dá esperança de renovação, para entregar-se de vez ao que lhe aflige na outra dimensão?
Dependendo da pessoa, questão fácil ou difícil de ser resolvida. Fácil porque talvez não deseje abrir mão de sua felicidade, ainda que frágil e apenas superficial, e por isso mesmo luta contra seus abismos até não mais suportar.
E difícil porque pode correr o risco de complicar ainda mais a situação. Ao desejar enfrentar seus monstros interiores sem sair da superficialidade que lhe sustenta e dá força, a pessoa certamente não enfrentará aquela dura realidade com a determinação que deveria ter.
Por isso mesmo comumente se diz que é preciso cair para aprender levantar, é preciso padecer para encontrar soluções. Ciente da ilusória felicidade que estampa no rosto, e objetivando alcançar uma paz duradoura, não há outra coisa a fazer senão descer de vez ao seu abismo.
Descer, reconhecer os erros e as culpas, sofrer se preciso for para, enfim, alcançar a luz. Quem tem consciência desse seu próprio abismo e não teme encará-lo com todas as forças, certamente fará da dor e do sofrimento aprendizados essenciais para a posteridade.
Eis que abismos interiores não surgem para que as pessoas desçam pelas escadas dos erros e infortúnios e procurem submergir ainda mais. Surgem como espelhos, como oportunidades para que as pessoas aprendam com os desatinos e depois emirjam, ressurjam vitoriosos, prontos para a real felicidade.
Daí que os nossos abismos, nossos problemas interiormente profundos, sempre provocam mais lições proveitosas que as nossas superficialidades. Ademais, as aparências enganam tanto que a pessoa pode mesmo deixar de se reconhecer. E numa situação assim nada poderá ser resolvido, nem as dores da alma nem a mísera face do fingimento.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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