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domingo, 30 de março de 2014

RETRATOS, MEMÓRIAS E SAUDADES


Rangel Alves da Costa*


Recordo bem aqueles retratos emoldurados em cima do móvel na sala de estar. Dois retratos diferentes, em preto e branco, mas que ganharam coloração pela maestria artesanal do artista da fotografia. Coloridos artificialmente, em pinceladas realçando as faces, receberam também molduras douradas, se abrindo ao meio.
Meu pai e minha mãe. Jovens, bonitos, ele mais sério e ela com sorriso sempre cativante. Não sei aonde, mas o porta-retrato ainda deve estar guardado em algum lugar. Retratos são diferentes das pessoas, pois têm o dom de permanecer quando os retratados já não estão mais aqui. As feições avistadas agora servem à ilusão da presença, ainda que presentes estejam nos corações familiares.
Também recordo dos retratos de meus avôs Dona Marieta (Mãeta) e Teotônio Alves (Pai China) numa das salas. Um dia um velho restaurador de fotografias bateu à porta de casa e minha mãe pediu que transformasse duas pequenas fotografias num retrato emoldurado de parede. Tempos depois os dois surgiram em tamanho grande, coloridos, adornados em madeira antiga.
Nas paredes ou por cima dos móveis, as fotografias e porta-retratos ganham significação especial. Tantas vezes surgem como meros enfeites, como instantâneos familiares para serem relembrados a qualquer momento, mas o tempo acaba cuidando de transformar os retratos em saudades e recordações. E dolorosas quando aquelas pessoas somente podem ser avistadas naquelas molduras.
De repente, e a fotografia é o único sorriso que resta. E quanto mais o tempo passa mais aqueles retratos parecem ganhar vida própria. O sentimento de ausência, aliado ao imenso desejo daquela presença, acaba provocando um relacionamento tão afetuoso que nem nos instantes possíveis era tão corriqueiro. É como se quisesse revelar na fotografia aquilo que restou incompleto noutros instantes da vida.
Talvez os retratos antigos também chorem, talvez sintam as mesmas saudades, talvez queiram dar os mesmos abraços. A vidraça amarela embaça o olhar marejado, a moldura desgastada acaba escondendo a feição angustiada e querendo expressar além daquela névoa do tempo. E quem olha também retrata o quanto dolorosa é a distância de um olhar: o infinito entre uma presença e uma ausência.
Os álbuns, os escritos, as relíquias tudo serve como recordação, porém nada igual a avistar um sorriso conhecido na parede, um olhar afetuoso em cima da estante, uma feição tão amável em cima de um móvel qualquer. E verdade que ninguém olha num repente e deixa para trás a saudade. A vontade que se tem é de conversar, de perguntar como vai, de falar coisas amorosas. E também de abraçar e revelar todo o amor sentido.
Silenciosamente converso com os meus. Há um retrato de meu pai acima de minha estante e uma fotografia de minha mãe na mesma estante, ao lado de uma Bíblia. Alcino está sorridente na porta de uma casinha sertaneja. Dona Peta também sorridente como sempre se mantinha em vida. E é difícil acreditar como dois sorrisos conseguem transformar em lágrimas os olhos daquele que olha. E sente.
Os retratos são, assim, nossas memórias visíveis, nossas saudades estampadas, nossos encontros distantes. E servem não apenas para o diálogo com os antepassados como para o entendimento de nossas próprias transformações. Também nos sentimos nostálgicos e saudosos de nós mesmos. As feições retratadas que não voltam mais, olhares e sorrisos que não são mais os mesmos.
Diferentemente do que ocorre quando sentimos fisicamente o tempo passando, os retratos possuem o dom de rejuvenescer na saudade, na lembrança de como quase tudo era diferente. E acabamos percebendo que nos dividimos em três: aquele que está dentro de nós, o que está refletido no espelho e o da fotografia. E o temor de desbotar ainda mais o que está dentro de nós.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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