SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 7 de março de 2014

ANTES DE PARTIR


Rangel Alves da Costa*


Deus do céu como é boa a vida; Senhor, como é bom viver. Até dois dias atrás estava de mala arrumada para pegar estrada e eis que uma serena voz, silenciosamente soprando ao meu ouvido, me mandou pros lados do Monte do Entardecer.
Já que eu estava decidido a ir embora, justo que a voz me lembrasse de fazer a despedida àquele que talvez fosse o meu único amigo nos últimos tempos. No Monte do Entardecer, ao cair da tarde e pertinho do anoitecer, travei diálogo comigo mesmo, conversei com meu Deus, estendi o meu dedo em direção ao seu.
Mais cedo que o normal, tranquei a porta e sai quase correndo em direção à vereda que me conduziria até lá. Mas o passo diminuiu quando entrei numa rua e avistei uma flor na janela. O caqueiro estava ali, a roseira também, mas a flor era outra. E que linda pétala soprada pela brisa da tarde.
Já não sabia se ia ou ficava, se prosseguia ou voltava. O vento que sopra apenas volteia em frente às coisas belas, as horas deixam de avançar para não ver o instante passar, o beija-flor sente-se beijado com a simples visão do paraíso. E quem seria eu para não me entorpecer de desejo e de paixão escondida?
Arrumei forças para prosseguir e de repente já estava em frente à sua janela. Ela estava ali, mas não conseguia olhar no seu olhar. Não conseguia avistar nem ouvir mais nada, ainda que ela estivesse abrindo a boca pra dizer boa tarde, ainda que ela se permitisse esboçar um sorriso, ainda que ela acompanhasse com um olhar diferente o meu passo seguinte.
Foi por causa dessa paixão doentia que decidi ir embora de vez. Continuar por ali sem ter qualquer esperança, apenas amando e sofrendo sozinho, perdendo noites e madrugadas rimando seu nome em infinitos versos, traçando planos para ao menos entregar uma flor, um bilhete, um versinho dobrado, uma maçã do amor.
E era o nome dela na madeira do banco da praça, no tronco da árvore, vagueando pelo ar, escrito em qualquer canto e em todo lugar. Dentro de mim não duvido que esteja dividido numa parte que é só dela e noutra que só pensa nela. E eu, que chamei a manhã pelo seu nome, a tarde pelo seu nome, o sonho com nome e sobrenome: ela e ela..
É dolorosa aflição para quem não tem esperança de beber do cálice da possibilidade, buscar a cura na gota azul do seu olhar, encontrar a paz espiritual naquele sorriso exalando vida, buscar o renascimento do coração através da palavra talvez. Sim, talvez, pois a dúvida é fronteira que não afasta de vez a presença do amor.
Mas soprado pelo vento, e andando mais rápido quando ele batia mais forte, o Monte me acolheu sem ao menos eu perceber que havia chegado. E em seguida disse-me que olhasse adiante e percebesse que não há nenhuma beleza no que se apresenta ao olhar se não estivermos com o espírito preparado para aceitar as coisas belas. E perguntou se o meu espírito naquele momento era capaz de enxergar o sol se pondo através da nuvem.
Nem respondi. Então a voz do Monte me disse que voltasse para buscar a palavra e junto com ela trouxesse também o olhar com a limpidez da alma renovada. Mas que só voltasse no dia seguinte, pois naquele resto de tarde eu teria que recolher tudo aquilo que precisaria para enxergar a vida na sua grandeza.
Retornei entristecido, pensando nas palavras do monte. Assim que a avistei na janela me enchi de coragem e vontade de dizer tudo o que sentia naquele momento e de uma vez por todas. E não me reconheci a tanto falar, a declamar, a cantar versos de amor, a dizer do que sentia. E também da certeza do impossível amor em apenas um.
Até que o destino da vida em dois me mostrasse a renovação da alma através do amor. E então pude retornar ao Monte para agradecer o encorajamento e dizer que além daquele olhar encontrei uma palavra singela. E de amor.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Doutor Rangel: O meu bom-dia.
Com o meu constante trabalho de pesquisa na área da história do cangaço, não tenho feito comentário no seu blog. Venho, contudo, salvando todos os seus artigos e crônicas no meu HD externo, e muitos deles colocados em encadernação para pesquisa e como lembranças, logo que, até mesmo suas crônicas são carregadas de poesias, como é o caso desta que hoje você postou. E, logo que vivemos num "mundo" de violências, nada mais saudável que injetarmos doses de poesia.
Abraços,
Antonio José de Oliveira Povoado Bela Vista - Serrinha - Bahia.