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sábado, 1 de fevereiro de 2014

VIDAS AVESSAS


Rangel Alves da Costa*


Muito já se escreveu sobre a vida e seu significado, a razão da existência e o mínimo que se deve ter para dignificar uma sobrevivência. Mas também muito já se reconheceu acerca dos desnorteamentos impostos ao simples ato de viver e sobreviver com feição humana.
Para a maioria, longo e difícil é o percurso entre o ato de nascer e morrer, ainda que a vida seja curta. Difícil caminhar por estradas conhecidas e alcançar os objetivos desejados. A cada passo a transformação, a curva no caminho, um novo desafio na existência.
Ninguém trilha sua estrada através de linha reta, muito menos aqueles que já nasceram em leito humilde. O caminho imaginariamente florido é recoberto de espinhos e ladeado por labirintos. Em tudo um pêndulo, uma inclinação ora para ter mais e ora para ter menos. E muitas vezes nada. Ou quase nada.
E é a vida caracterizada pelo ter nada ou quase nada que confronta com a existência, com a própria vida enquanto possibilidade de realização. E as vidas que chegam ao difícil reconhecimento da contínua dificuldade ou impossibilidade de sair dessa situação não podem ser reconhecidas senão como vidas avessas.
Avessa é a vida vivida na pobreza, na miséria, no abandono, na degradação e na humilhação. Avessa é a vida ainda escravizada pela sociedade, submissa pela própria necessidade, subjugada pela discriminação e o preconceito. Tão avesso à existência do homem é a negação de seus valores.
Avessa é a vida suportada na esmola, na mão mal-intencionada e aproveitadora do outro, na aceitação da indignidade sob pena de se recurvar ao pior. Avessa é a vida sem teto, sem saúde, sem ter como ganhar o pão pelo próprio suor. E não há vida mais avessa que sendo pessoa ser avistada como se não fosse gente.
E vidas avessas porque contradizendo o próprio sentido de existência do ser humano. Avessas porque pessoas menosprezadas, tidas como inferiores. Diferenças existem e sempre irão existir, mas não se pode admitir que a própria sociedade semeie os grãos da divisão social e depois queira justificar a desvalia de tantos através do destino.
E ainda vidas avessas porque simplesmente colocadas na marginalidade, seja pela negação da fruição dos bens sociais colocados à disposição da sociedade, seja pela imposição do estado de carência, pobreza e miserabilidade. A falta de políticas eficazes para combater tais problemas é também uma forma de justificação dos absurdos sociais existentes.
Não é da normalidade da vida, e por isso mesmo tendo de ser considerado como algo avesso, contrário à dignidade humana e oposto à sua valorização, toda forma de limitar suas forças, de impedir sua libertação através da educação, do conhecimento, da informação. E mais avesso ainda é o discurso da resolução quando se tem a continuidade.
Já disse o poeta que gente nasceu para ser feliz. E nisto a mais pura verdade. O homem não vem ao mundo apenas com o dom da existência, mas também da realização em busca da felicidade. Mas quando a sociedade lhe nega passagem em detrimento de outros, então se observa a quebra do contrato ético de reconhecimento e valorização de todos, indistintamente.
E o que a sociedade se impõe como normalidade, pois aceita com naturalidade, muitas vezes não passa de avessos da ética e da moral social. Simplesmente aceitar que gabinetes políticos paguem salários a quem nada faz, enquanto outros vagueiam desesperadamente em busca de qualquer ofício, é um desses males que geram o avesso da desigualdade.
Enquanto o tratamento a problemas de saúde é normalidade nos ricos, a doença é normalidade nos pobres; uns podem pagar planos de saúde, outros sequer possuem atendimento digno nos hospitais públicos; tantos com educação de qualidade em escolas particulares, e muito mais entregues aos arremedos educacionais ou simplesmente sem escola nem professor. Algo está pelo avesso.
Quando a justiça se desiguala perante os desiguais é porque algo está no avesso; quando o pobre, o negro ou favelado é sempre confundido e tratado como marginal, principalmente pela polícia, é porque algo está pelo avesso; quando o ser humano olha para o seu semelhante com enojamento ou desdém é porque algo está ao avesso.
Algo está no avesso quando os discursos governistas recobrem de farturas e opulências os que continuam na extrema miséria; quando as drogas destroem jovens e famílias e não há um enfrentamento responsável e permanente pelos poderes públicos; quando a violência faz aumentar o numero de vítimas e os órgãos de segurança colocam a culpa nos erros das estatísticas.
Quanto e como, e muito e mais, estão pelo avesso. Aquilo ou o que está ao avesso, contudo, não requer o verso, o outro lado, não deseja ser o seu contrário. Não. O avesso não deseja ser revirado para se tornar igual à outra face. Dessa face nefasta quer distância. Quer apenas que não seja avesso. Ou seja, quer respeito e tratamento digno e igualitário.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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