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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

RETRATOS ANTIGOS


Rangel Alves da Costa*


O passado deixa marcas nas lembranças, nas recordações, nos retratos antigos. Não somente naquelas fotografias em preto e branco, hoje amareladas ou esquecidas nas paredes poeirentas dos tempos, mas principalmente naquelas feições que ainda avistamos pelas ruas como se por ali ainda estivessem.
Basta andar pela cidade e de vez em quando o olhar saudoso começa a mirar um ou outro lugar de forma diferente. O olhar avista e reconhece praças, seus arvoredos e bancos ainda que não mais existam. Uma esquina de uma rua, a janela de uma casa, um casebre, uma residência ajardinada com pomar e cachorro. Tudo é rememorado com pulsante vivacidade.
Do mesmo modo ocorre com pessoas. Não é difícil passar em determinar local e recordar a feição da velhinha costumeiramente sentada na sua cadeira de balanço, do doido que sempre fingia querer arremessar uma pedra, da menina triste  e sua feição ainda mais triste no entardecer da janela. Mesmo não sendo mais encontradas pessoalmente, tais pessoas acabam sendo reencontradas, avistadas, recordadas.
Assim ocorre porque temos uma mente que não esquece de vez as situações, coisas e pessoas vivenciadas no nosso percurso de existência. Contudo, sabiamente a memória depura aquilo que mereça ser guardado e recolhido como recordação. Daí que mesmo diante de um prédio ainda conseguimos recordar que naquele local havia um campinho onde as crianças faziam brotar as forças de suas idades.
Mas muito diferente das recordações forjadas que nos permitimos rebuscar. Uma coisa é a recordação fruída de repente, nascida do nada, apenas interligando momentos ou situações, e outra é a pessoa trazer à mente aquilo que deseja. Recordar o primeiro amor, por exemplo, é muito diferente de essa recordação surgir quando uma flor é avistada, um poema é lido, uma canção é ouvida. A feição vem se a lembrança é desejada, mas não com a singeleza do acaso sentimental.
Meu pai e minha mãe já não estão comigo na vida terrena. Mas não preciso olhar fotografias para relembrar os sorrisos, os contornos de suas feições, as atitudes tão próprias de cada um. Minha mãe está na própria ausência, naquilo que ela gostava e assim a reencontro, por exemplo, numa toalha de mesa lindamente bordada. E o meu pai no sertão, em tudo que seja sertão e sua imensidão. Basta pensar em sertão e ali a feição de meu pai.
Vejo crianças correndo pelas ruas ao anoitecer sob a lua de pedra e me transponho, descalço e incansável, para os descampados do meu lugar nos idos da infância. O ofuscado brilho da lua sob telhados é recompensado pela visão da lua imensa e majestosa do meu rincão. A lua daqui nem se compara com a de lá, mas serve como ponte de recordação para o que tanto vivenciei e que ainda existe naqueles noturnos sertanejos.
Mas outras coisas surgem como forçadamente. As mudanças repentinas, o progresso voraz, as transformações desconcertantes, tudo isso me faz voltar ao passado. Quase como fuga dessa realidade angustiante, a verdade é que me lanço ao passado como forma de reencontrar alguma pureza da vida, uma verdadeira significação para a existência. E é quando me vejo trilhando aqueles dias e encontrando feições que se imortalizaram na minha memória.
Nas ruas antigas de minha Nossa Senhora de Poço Redondo reencontro Seu João Fotógrafo e seu tripé de retratos em preto e branco, e estes tão requisitados em épocas de festa de agosto. Revejo Manezinho Tem-Tem, o engraxate de porta em porta e seu poder de transformação do encardido em espelhado. E também a vendedora de araçá, de piau, de araticum, de elixir contra todos os males.
Basta que eu veja um copo de arroz doce e recordo de Baíta; basta que eu aviste um artesanato de couro cru e logo relembro de Brasilino. E assim com a cocada de Dona Quininha, o doce de frade de Dona Cecília, o chocalho de Galego, a roupa bem feita de Zé de Bela. Ver comida de feira é ainda sentir o aroma apetitoso saído do fogão de Dona Jarde.
E tudo retrato que ainda guardo comigo. E tudo saudade que jamais deixarei de sentir.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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