SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A GUERRA DOS CACTOS


Rangel Alves da Costa*


Aconteceu no sertão. A maior guerra de todos os tempos, dado às armas usadas pelos combatentes, aconteceu no sertão. E recebeu o nome de guerra dos cactos porque travada entre mandacarus, xiquexiques, palmas, facheiros, cabeças-de-frade, e também urtigas e cansanção. E teve muito mais planta espinhenta envolvida.
Tudo começou por causa de uma seca terrível que se espalhava pelos quadrantes sertanejos. Quando a estiagem desceu no raio de todos os sóis, a água do barreiro virou lama, a planta se curvou desvalido, tudo acinzentou e definhou, começou um deus nos acuda de fazer cortar coração.
Quem ainda possuía pequeno criatório, ou mesmo dono de uma ou duas vaquinhas, logo se viu numa situação indescritível. Enganava o choro da filharada com pedaço de pão ou naco de qualquer coisa, mas era diferente com o bicho secando de fome e sede na malhada. Não havia nada a fazer que pudesse enganá-lo, calar sua voz lamentosa.
Quando a situação chega a esse ponto, só há uma saída para o sertanejo, mesmo assim se puder dispor da saída. Outra coisa não se pensa em fazer a não ser lançar mão das cactáceas sempre resistentes nas terras esturricadas. Por isso mesmo que alguém já disse que os cactos são os únicos remédios que o agoniado pode lançar mão naqueles momentos onde não há mais nenhuma planta em pé.
Com efeito, todo o capim existente já havia sido devorado pelos animais ou secado pelo sol. Não existia mais folhagem com seiva nem broto que enganasse qualquer barriga. Não havia realmente nada para oferecer aos bichos, a não ser os cactos que se espalhavam pelos pastos e escondidos. Era sempre assim, mas daquela vez aconteceu diferente.
Assim que perceberam que havia chegado sua vez de morrer para alimentar animal - e até gente, certamente -, então os cactos começaram a buscar estratégias para se defender. Tramaram, pensaram, esboçaram ações e reações, e chegaram à conclusão que se não havia mesmo jeito a dar, então que os outros cactos fossem os escolhidos para o golpe do facão afiado.
E, assim, a causa maior da inenarrável contenda: cada cacto, lutando pela preservação da vida, começou a tramar contra o outro, jogando a lâmina para o seu pescoço. Foi por isso que a palma fingiu estar doente, seca e frágil demais, quando o sertanejo lhe alcançou. Foi poupada, mas nem sem antes dizer que o xiquexique estava gordinho e verdejante. E foi o fim do pobre coitado.
Tal conversa se espalhou de tal forma e tão rapidamente que assim que um cacto avistava um sertanejo de facão na mão logo apontava onde havia uma planta boa para o corte. Fugindo da degola, colocava a outra com a cabeça no cesto. Sem saber da safadeza, o sertanejo deixava a mentirosa pra trás e agia impiedosamente com a inocente. Mas a situação ficou tão insuportável entre as plantas que não demorou muito e a guerra foi declarada.
Era espécie contra espécie, mandacarus contra xiquexiques e palmas, e estas contra facheiros, cabeças-de-frade, urtigas e cansanção. Quem era espinhento, usava os espinhos como arma mortal; quem era urticante, usava suas queimações como arma letal. No calor da luta, no desenfreio do embate, tantas vezes cactos da mesma espécie espinharam mortalmente seus companheiros. Dizem que um xiquexique, ao ser covardemente espetado por outro, afirmou cambaleante: “Até tu, brutal amigo!”.
O mandacaru, agindo com terrível violência pelo seu tamanho, um verdadeiro Golias em meio aos cactos pequenos, bastava descer seu braço cheio de espinhos pontudos e a morte era certa aos que estavam ao redor. Contudo, não esperava que o seu maior algoz fosse uma cabeça-de-frade que lutava rente ao chão. Alto demais, o mandacaru não podia se proteger por baixo e se viu apunhalado bem no seu calcanhar. E devastava tudo que estivesse embaixo quando desabava mortalmente ferido.
Guerra terrível, sangrenta demais, com cactos mortos se acumulando por todo lugar. Numa situação assim, logicamente que todos os seres viventes das matas debandaram em correria. Um preá, coitado, voltou para buscar um retrato da amada e caiu na fúria de uma cansanção. Dizem que enlouqueceu com o pelo tomado de terríveis afecções urticárias. E acabou com a própria vida ao se lançar na ponta de um espinho de facheiro.
Voando por cima, sorridente do alto, um urubu testemunhava contente aquela carnificina. Esperava apenas o momento certo para se fartar dos restos mortais. Medroso, covarde como ele só, precisava ter certeza que não encontraria perigo. Quando tudo parecia apenas silenciosos escombros, ele juntou garfo e faca para o dia seguinte. Então aconteceu o inesperado.
Durante a noite caiu uma chuvarada sobre o campo de guerra e logo os corpos estendidos começaram a gemer dando sinais de vida. Não demorou muito e já estavam retomando forças, tomando seus lugares novamente na natureza. Tudo parecia normal quando o sol, dois dias depois, voltou a brilhar. Apenas curativos brancos nos braços dos cactos, e que tremulavam ao vento como bandeiras brancas. De paz.
A paz. Se há chuva no sertão sempre há paz pelos campos.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

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