Rangel Alves da
Costa*
É até
difícil de acreditar, mas aconteceu de verdade. Sei que nenhuma valia darão ao
que vou contar, mas preciso descrever o acontecido, sob pena de ter que guardar
sozinho essa espantosa e medonha coisa do outro mundo.
Aconteceu
assim. Encontrei um amigo pelas andanças da vida, já quase chegando o
entardecer, e após os cumprimentos corriqueiros começamos a falar sobre os
tempos idos e outros tempos. Conversa boa, animada, mas de repente ele apontou
para alguém dobrando uma esquina e disse:
“Está
vendo aquele ali. Morreu tem pouco mais de uma semana, mas todo dia levanta do
túmulo e vem esperar a passagem daquela que era sua paixão. Ela não
correspondeu seus amores, então o pobre desiludido se findou com uma corda
amarrada no pescoço. Passa a noite inteira chorando dentro do túmulo”.
Logo
imaginei que o amigo - brincalhão como sempre se mostrava - estava aprontando
mais uma das suas. Mas não demorou muito e ele falou-me quase ao ouvido, bem baixinho:
“Escute,
mas não olhe agora não. Aquele ali debaixo do pé de pau morreu de morte matada.
Era cabra ruim e perigoso demais, uma verdadeira fera em vida, mas até que
encontrou a medida de seu sapato. Quis judiar de um zé-ninguém e recebeu um
balaço por cima das fuças. Todo dia levanta da cova e vem em direção à igreja.
Mas só chega até ali porque ainda não lhe foi permitido entrar num templo
santo. E precisa entrar na igreja pra pedir perdão pelos pecados cometidos na
terra porque nos próximos dias vai passar pelo teste do fogo. Por isso que fica
ali desesperado, tentando a todo custo seguir adiante, mas sem conseguir. Chora
e lamenta feito um desgraçado, como desgraçado sempre foi, até depois da
morte”.
A essa
altura eu já estava desconfiado demais com tais revelações. O homem só falava
que estava avistando gente morta, que sabia como havia morrido, o que fazia no
cemitério e tudo de mais aterrador. Já ia dar uma basta nessa conversa e
perguntar se estava maluco, mas ele entrecortou minhas palavras para dizer.
“Um belo
casal aquele ali. Uma pena que os dois já morreram e não faz muito tempo. Ouviu
falar no casal que as paredes do casarão caíram por cima do carro e teve morte
instantânea? Pois foi aquele ali. Digo casal, porém ainda eram noivos quando a
tragédia aconteceu. Mas já casaram no cemitério e ele agora vivem praticamente
no mesmo túmulo. Todo dia levantam do jazigo sempre florido e vêm buscar flores
no jardim ali diante. Pode olhar. Eles chegam, colhem duas rosas e voltam de
mãos dadas ao cemitério”.
Ora, não
suportava mais ouvir esse tipo de conversa de jeito nenhum. Por mais que ele
fosse meu amigo e que eu estivesse contente por tê-lo reencontrado depois de
tanto tempo, não conseguia mais ficar ouvindo coisas de morte, de morto, de
cemitério e de vida depois da vida. Tomei coragem e disse-lhe:
“Desculpe
meu amigo, mas acho que você deve estar com algum problema. Não pode ser normal
numa pessoa estar reconhecendo mortos, dizendo quem já morreu. E o pior é que,
pelo jeito, todo mundo que passa por aqui já morreu...”.
E tive
interrompidas minhas palavras para ouvir, agora mais assustado do que tudo na
vida:
“Sim, você
tem razão. E tem razão até quando diz que parece que todo mundo que passa já
morreu. Todo mundo já morreu mesmo, até eu. Aquele ali, aquele outro, tudo
mundo já morreu. E eu morri já faz mais de dois anos. Mas todo dia vinha aqui
para poder lhe encontrar e dizer uma coisa. E agora que o encontrei tenho de
revelar. Você também já...”.
Nem
esperei o fim da frase e saí correndo. Mas ainda consegui ouvir o teor das
palavras, pois ele repetiu tudo quase num grito: “Você também já foi escolhido
para saber que os mortos também vivem entre os vivos como pessoas comuns”.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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