SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 11 de outubro de 2013

UMA CANÇÃO NOITE ADENTRO


Rangel Alves da Costa*


Noite silenciosa, fria, com um arremedo de chuva caindo lá fora. O dia inteiro assim melancólico, sombreado, se tornando mais poeticamente triste após o entardecer.
A ventania do dia se esvoaçou com a tarde. E a brisa tomou seu lugar num passo sem pressa. Hora de revoada, do pôr do sol, das cores afogueadas se misturando às nuvens de despedida. A noite já abre a porta.
Estranho que aconteça assim. Todo dia assim. Quando a noite abre a porta e vai entrando, escurecendo tudo ao redor, então começo a ouvir uma canção. Não sei se de onde vem, de qual acorde ressoa, mas me chega tão suavemente como um Noturno de Mozart ou Chopin.
Na minha mente e onde eu esteja, sempre chega no mesmo volume, apenas um som levemente distante e aconchegante. Talvez um piano das horas, um violino do tempo, uma sonata da noite, um prelúdio de tristeza e solidão.
Abro a janela na presença da melodia, caminho pela escuridão e o mesmo Danúbio, todo azul; miro a lua, dialogo com as estrelas, lanço o olhar ao planeta invisível, e a doce sinfonia bailando ao meu redor. Outra noite tive a certeza de ouvir Vivaldi. Implorei para ficar com a Primavera de As Quatro Estações.
Não quero entristecer em noites assim. A melodia é acalanto e não tormento, mas também não posso deixar de, através da música, ver além da cortina que embalança na janela adiante. Um dia joguei fora as chaves do baú. Um dia jurei não mais abri-lo. Mas impossível em noites assim.
Um rosto, uma face, uma feição, uma fotografia, um retrato amarelado. Um pedaço de papel, um escrito, um livro antigo, uma folha seca marcando um Salmo. Ainda sinto o cheiro dessa ausência, ainda me vejo diante do olhar, ainda ouço a voz. Noite, noite, música, música, por que tanto aflige o ser?
O baú me vem à memória com trilha musical. A velha canção me chega como um açoite de vento. Fecho o baú e tento não ouvir a melodia, mas ainda resta a janela aberta, a noite lá fora, a chuva fina caindo, um vapor que me invade feito uma canção dolente. Sim, novamente a canção.
Não adianta fechar a janela se ainda restam as paredes com suas presenças, olhares e recordações. Outros retratos estão ali, também um velho relógio de parede que emudece diante do meu olhar. E também um espelho. Não me olho mais, finjo que ele não existe. Mas sei que dentro dele há uma orquestra com uma velha canção.
Numa noite, igualzinha a uma noite qualquer de tristeza e solidão, transbordei mentalmente o segundo copo de vinho e decidi ouvir a música que eu quisesse. Não queria mais aquela canção martelando o pensamento, dilacerando meus sentimentos. Somente outra música para afastá-la de vez. Pensei.
Transbordei o imaginário quinto copo de vinho, seguidamente ouvi Offenbach, Carl Orff, Tchaikovsky, Lizst, Bach, Mozart, Beethoven, Schubert, Strauss. Prelúdios, noturnos, valsas, tocatas, sinfonias, sonatas, música sacra. Mas tudo dividido com a outra canção, aquela que persistia em mim como a própria existência.
Não há como fugir da canção, da canção noite adentro. Não posso fugir da noite, não posso fugir desse momento mágico, ainda que sempre chegue trazendo relembranças, tristezas e recordações. É na noite que os sentimentos afloram, que o coração poetiza um verso de desamor, que o olho mareja para navegar. E também a canção.
Farei de sua música a trilha sonora de cada momento. Se não posso fugir do lago dos cisnes ou da floresta encantada, se não posso deixar de singrar pelo lindo Danúbio Azul ou pelas gôndolas venezianas ao entardecer, então que a música me chegue assim tão suave e bela.
Que se faça em mim a canção noite adentro. Não quero o silêncio do sofrimento. Não quero mais sofrer. Preciso voar.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

Um comentário:

Anônimo disse...

Caro amigo Rangel: Nesta sua bela crônica você fala que "é na noite que os sentimentos afloram". Exatamente. Eu, como um eterno aluno seu e de outros companheiros da literatura, vejo fluir as lembranças na memória exatamente à noite quando estou sozinho e as ruas da nossa Vila em pleno silêncio.
Abraços,
Antonio Oliveira - Serrinha-Ba.