SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 18 de outubro de 2013

PÉ DE BRIGA


Rangel Alves da Costa*


Ao menos na terra de onde vim - sertão de conceito maior -, denomina-se pé de briga o motivo ensejador de uma discórdia, de uma discussão, de uma pega-pa-capá mesmo. Pode ser por coisa besta, motivo fútil, de aparência irrelevante, mas que pode ganhar contornos com consequencias inimagináveis.
Assim, o pé de briga é exatamente o pontapé inicial do arranca-rabo, que pode ser ocasionado por um olhar que o outro não gostou, uma palavra que chegou ao ouvido de forma aviltante, um gesto provocador, uma atitude tendente a gerar confusão. Muitas vezes uma coisa insignificante, besteira mesmo.
Já soube de casos em que o pé de briga era realmente coisa sem pé nem cabeça. Certa feita uma arruaça foi formada porque o valentão ofereceu uma dose de bebida e alguém se negou a tomar; uma vizinha jogava lixo no outro lado do muro esperando somente a outra vizinha achar ruim. Quando esta foi reclamar, então a briga já estava feita, preparada, arrumada pela semeadora da discórdia.
A mocinha vestiu uma sainha que quase mostrava os fundilhos, saiu à rua se rebolando, um gaiato deu psiu e ela não gostou. Correu e foi dizer ao pai que o outro lhe havia chamado disso e daquilo. O pé de briga tava feito. Já uma solteirona, encalhada de muitos anos, partia pra violência, pra esbofetear e destruir quem ousasse dizer que ela já contava com mais de quarenta anos. Era chamá-la de titia que a desgraceira estava feita.
Os meninos sempre jogavam bola tranquilamente no descampado. Eis que a danada da mulher ia devagarzinho com um cesto de roupa lavada e estendia no varal que ficava bem atrás da trave. Depois voltava e ficava escondida olhando quando alguém chutava uma bola mais forte e atingia qualquer pano estendido.
Doidinha pra arrumar encrenca, pra soltar o verbo impuro. Assim que a bola atingia um calçolão ela partia de lá esculhambando com tudo e todos, de vara na mão querendo agredir. Como um parente da meninada sempre chegava para intervir, então o banzé estava feito, em estado de injuriamento. Ora, o pé de briga já havia sido a premeditação da mulher.
Por não ter arranjado namorado na quermesse, a mocinha solitária e carente ficou de mal de fogo a sangue de Santo Antonio, o casamenteiro. Tirou o coitado de casa e o colocou de cabeça pra baixo na porta da igreja. Com cabeça enterrada no chão e as perninhas pro ar, o coitado do casamenteiro recebia o que não merecia.
Mas dizem que ele a perdoou e arrumou um pé de briga para sua companhia até quando ele suportasse tanto mandonismo, exigências e aborrecimentos da parte dela. Assim que o esposo botava o pé na porta e lá vinha a dita perguntando onde estava, com quem conversou, o que fez. Como ele não suportava tal tipo de coisa, tudo era pé de briga. E Santo Antonio não pôde fazer mais nada.
Mas certo dia uma vizinha passou pela frente do murinho baixo da outra vizinha, cumprimentou-a e disse, num tom amigueiro e sem querer ofender, que uma plantinha parecia não ter sido aguada, pois estava murchando. A outra não gostou e disse que o que estava murchando era a cara dela, tão feia que parecia um maracujá de fim de feira. Então o pé de briga começou a ferver.
A ofendida respondeu na hora e disse que nem pra maracujá a outra servia mais pra ser, senão uma melancia velha e podre que nem os porcos queriam experimentar como lavagem. “Melancia podre é você, sua sirigaita, sua quenga, gaiera, que nessa idade não se respeita e vive escondendo macho debaixo da cama”. Prestou não.
“O que, sua filha da puta safada, ladrona de homem dos outros, rapariga rampeira que tem um caso até com o entregador de leite. Pensa que eu não vejo não, é? Sua vagabunda imprestável...”. E a coisa esquentava demais.
“Todo mundo sabe que nem você nem sua raça valem um conto, é tudo gente safada, ladrona, bandida de marca maior, e qualquer dia o que não for preso vai contar história debaixo da terra...”. Vixe Maria!
“Você prova o que tá dizendo? Bandida é você, puta safada, sem vergonha, que compra e não paga a ninguém. Não sou eu quem vive recebendo cobrança na porta noite e dia...”. Lascou-se.
“Espere aí que você vai ver o que é bom pra tosse agorinha mesmo...”. E partiu pra cima da outra, voando em direção aos cabelos. Houve contra-ataque. Sopapos daqui e de acolá, madeixas espalhadas por todo lugar.
Dizem que até hoje brigam. E tudo nasceu do nada, de uma besteira, de um pé de briga que mais cedo ou mais tarde haveria de acontecer. E o que seria vizinhança senão o verdadeiro e autêntico pé de briga?


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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