SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 20 de outubro de 2013

DA ARTE DE UM POVO AOS SAUDOSOS OFÍCIOS


Rangel Alves da Costa*


As profissões atuais modernizaram-se quase todas. Dificilmente se encontra um artífice trabalhando como antigamente. Ademais, poucos são os ofícios que permanecem pela força, dedicação e amor de mãos verdadeiramente artesãs. Para se ter uma ideia, coisa rara é poder dispor de alguém que ainda produza um gibão de couro na medida, sob encomenda.
Nos meus tempos idos interioranos encontrava muitos desses artífices no seu bater, pregar e flamejar de todo dia. Hoje são apenas recordações. Até mesmo nas distâncias sertanejas aonde a modernidade chega mais lentamente e as tecnologias não causam impactos tão instantâneos, os velhos ofícios ou não existem mais ou se escondem por trás de portas pouco visitadas.
Tudo era praticamente na base da força, da destreza manual, da lâmina afiada, do braseiro crepitando, da navalha de mil cortes, da agulha grossa e recurvada, do esquadro de madeira lisa, da mesa de umburana de cheiro, do couro urdido nas águas do riachinho e curtido pelo sol de muitos dias. Muitas vezes sem saber ler nem escrever, mas não havia qualquer citadino de anel no dedo que chegasse com a petulância de querer ensinar. Verdadeira afronta pretender ensinar ao doutor do afazer manual.
E um monte de coisas simples surgindo como obras de arte. A madeira bruta, o tronco parrudo, o ferro retorcido, a courama crua, o cipó do mato, os novelos de linha, bilros, almofadas, bastidores, dedais, resina bruta, borracha de pneu, fivelas, ferro a carvão, fole fumegante; enfim, uma série de materiais recolhidos no meio ou na natureza, ou de fácil aquisição, que logo se transformariam em arte matuta de encher os olhos. Tudo acrescido de paciência, muita paciência.
O velho coureiro transformava o couro cru e malcheiroso em arreios, embornais, selas, gibões, chapéus, botas, rolós, chicotes, pederneiras, alforjes e tudo o mais que o sertanejo precisasse na sua lide. Do colo das velhas senhoras, geralmente sentadas nas calçadas ao entardecer, se estendiam as almofadas cheias de bilros e lentamente, na habilidade incomum dos dedos, iam surgindo rendas e trançados maravilhosos. Depois de juntadas, as peças formavam lindas colchas e toalhas para as mesas solenes e burguesas.
O velho ferreiro se entregava ao calor escaldante para entregar no tempo combinado a foice afiada ou o enxadeco com lâmina de punhal. Colocava o ferro bruto na fornalha e em seguida, com o metal abrasado, se punha a dar marretadas para dar feição e contorno ao que pretendia produzir. Depois molhado na água, o ferro soltava uma fumaça que impregnava tudo e enchia os pulmões do arteiro de fuligens mortais. Mas no passo seguinte e o mesmo processo sendo repetido, até a lâmina tomar prumo.
Não menos sacrificante, porém muito mais gratificante, era o ofício das senhorinhas parteiras sertões adentro. Mulheres de conhecimentos adquiridos de gerações a gerações, de mãos rudes das lides da vida, porém hábeis e cuidadosas para trazer ao mundo os pequeninos sertanejos. No meio da noite ou em qualquer hora do dia, bastava a mulher reclamar a primeira dor e imediatamente os serviços de obstetrícia matuta eram requisitados. Geralmente apenas com panos, tesouras, orações e gestos meticulosos de máxima sabedoria, e logo a criança rebentava em choro para alegria de todos.
E não menos reconhecida era a arte dos velhos santeiros e suas imagens sacras talhadas em madeira; as velhas mãos lambuzadas de barro liguento para moldar panelas, potes, moringas e tachos, todo um repertório em argila e que incluía personagens do cotidiano nordestino à moda do Mestre Vitalino. E eis as fateiras limpando tripas, buchos e todo que fizesse parte dos intestinos dos animais para a buchada. Em tudo a arte própria de um povo, fruto de raízes antigas, mas que praticamente esquecidas nos desvãos da modernidade.
Atualmente ainda é possível encontrar os livretos de cordel pendurados em barbantes pelas feiras interioranas, mas não na profusão de antigamente. Houve um tempo em que os dias de feiras eram verdadeiras festas com os cordelistas lendo suas histórias mirabolantes para um público receptivo e entusiasmado. E logo adiante os repentistas levavam no mote da viola e no verso rimado toda uma saga interiorana.
Num canto da feira o antigo retratista armava seu tripé fotográfico com paisagem ao fundo. Retrato para documento tinha de ser com aquela frente de paletó com gravata. Seriedade no três por quatro em preto e branco e sorriso permitido nas outras fotografias. E tudo muito simples, ao menos para quem observava. O retratista colocava sua mão por dentro daquela caixa com pano ao fundo e num instante a posteridade já estava garantida.
Dificilmente alguém não voltava da feira trazendo um frasco de medicamento ali oferecido em alarde. Os vendedores de remédios para curar quase tudo se punham de microfone amarrado na altura da boca e saíam oferecendo seus milagres caseiros. Pomadas, xaropes, misturas, fortificantes, tudo enfim, era ali oferecido para curar espinhela caída, bronquite e rouquidão, fraqueza física e sexual, falta de apetite e principalmente para revigorar o fluxo sanguineo. Famosa era a pomada de peixe, verdadeiro milagre curativo.
Tudo isso foi de um tempo ido. Verdade é que muito ainda se encontra por aí, principalmente nas feiras interioranas, mas não com aquela vivacidade de antigamente. Como se foram os ofícios e as artes singelas, também os autênticos pregoeiros das curas para todos os males da vida. E infelizmente, pois tudo isso fazia um incomparável efeito espiritual.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com     

Nenhum comentário: