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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 27 de setembro de 2013

RELICÁRIO


Rangel Alves da Costa*


Minha idade é a idade do tempo. E tempo presente e tempo passado, de agora até onde avisto aquilo que existiu um dia. Mas também tudo aquilo que mesmo não avistado me é trazido pelo conhecimento, pela busca incessante de conhecer e reencontrar o passado.
Por isso mesmo que sou tão novo e tão antigo. E tão próximo e tão distante. Sou de muitas verdades presentes e também de infinitas recordações. Contudo, quanto mais olho pra trás e procuro encontrar um fato ou lição mais me vejo caminhando por estradas ainda mais envelhecidas e empoeiradas.
Tudo me vem num instigante entrelaçamento. Se for atrás de uma linhagem familiar, eis que não me contento com o encontrado e sigo em busca das raízes primeiras; se olho para uma velha fotografia na parede, logo sou levado a querer saber mais sobre a pessoa, seu passado, sua existência, e também seus laços familiares.
Tudo num só percurso. A fuligem de agora, a pó de instantes atrás, a poeira de outros instantes, o grão de outro momento e o que se transformou para que surgisse esse grão. Daí o calcário, daí a rocha, o granito, a pedra. O que foi e no que se transformou, e também as mudanças nas transformações para, enfim, avistar o momento: a fuligem como o que restou da rocha.
Ora, nada mais que espelho da vida. Nada somos senão pelo que nos transformou. Somos apenas a feição de momento de aparências outras, mais antigas e que foram transformadas ao sabor dos dias, da vivência, dos tempos. Por isso que ainda somos tão crianças. E por isso também que somos o que sequer conhecemos, pois fruto de uma gênese maior de raiz a raiz. De lá até aqui, até o momento, é o que somos.
Sou, pois, o agora e o ontem, a impensável distância. Por ser presente e passado, por viver carregando, ainda que imperceptivelmente, as marcas passadas, logo sou eterno pela raiz primeira que me fez brotar. E basta a certeza de ser tão distante e profundo para que jamais me contente em conhecer apenas o que ache que pertença ao meu tempo.
Quero e preciso conhecer tudo. Se quanto mais cavando mais significado possa encontrar na areia, então que eu prossiga sempre adiante, pois não me canso de cavar mais fundo se sei que posso encontrar baús repletos de histórias e vidas guardadas como relíquias. E que belo relicário é aquele que se nos apresenta como fundamento maior da própria existência.
Desse modo, nunca há uma fronteira delimitada para o que preciso encontrar. Não que eu não saiba o que realmente pretendo obter, mas pelo simples fato de jamais me contentar apenas com o que avisto, encontro ou sei. Quero sempre mais. Quero as faces da feição, o verso da aparência, as sombras da imagem, tudo que está ao redor e além, mesmo muito distante.
Assim, o que estou já não é, pois noutro lugar. Onde talvez esteja já está buscando outro lugar. Quando penso ter encontrado tudo, eis que me surgem as indagações e tantas vezes eu tenho de refazer todos os passos. E assim me sinto um baú antigo numa estante nova, uma chave enferrujada numa janela aberta.
E todo o encontrado, seja no baú ou na experiência do instante, cuidadosamente guardo no meu relicário. E são tantas as relíquias, preciosas memórias, raízes ainda presentes, experiências, objetos, escritos e pequeninos acontecimentos cotidianos, que de repente penso não haver mais lugar para o que alcançarei amanhã.
E amanhã o retorno. E depois e depois o olhar voltado ao que existiu agora. Talvez amanhã enxerguemos mais o agora do que o instante vivenciado. Porque nos esquecemos de fazer a hora. E porque gostamos de sentir saudades pelo que de uma forma diferente deveria ser feito.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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