SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 23 de agosto de 2013

NÓS, O DESERTO


Rangel Alves da Costa*


Não somos da raiz tuaregue, beduína ou de qualquer outro povo saariano, de passo e percurso como errante desértico. Não vivemos atormentados por ferozes nuvens de areia, recobertos pelo sol atemorizante nem sedentos de delirar na ilusão de gota d’água.
Também não vivemos subindo e descendo dunas ou caminhando léguas infindas em planícies de areia e fogo tentando avistar um oásis perdido. Ou apenas a sua miragem. Por isso não sonhamos com fontes de água fresca e coqueirais, arvoredos sombreados e pomares de doces frutos.
Não armamos tendas para fugir do gélido sopro da noite; não nos sentamos ao redor da fogueira para pegar com a mão os grãos preparados e levar à boca; não tememos as serpentes do deserto que de repente surgem acima dos areais. Também não avistamos sempre a mesma paisagem inóspita e hostil por todos os lados.
Não somos assim, não somos nada disso, mas somos tudo isso. Não vivemos nas desoladas imensidões saarianas, não temos apenas açoites de poeira e pó sobre os nossos corpos, mas inegavelmente que vivemos num deserto. A solidão que é desértica por nós se tornou conhecida.
Talvez apenas uma duna nos separe, talvez a mesma nuvem de areia sopre em nós dois em instantes diferentes, mas não estamos distantes, pois vivendo a mesma situação. O sol da angústia recai sobre nós, a sede da saudade está em nossas bocas, a fome de querer encontrar igualmente nos atormenta.
Não somos o povo do deserto porque somos o próprio deserto. Sim, eu e você, nós dois, somos e vivemos este imenso deserto que nos alcança e nos aflige a todo momento. Mas nada que tenha surgido ao acaso, nada que esse ermo de desolação, angústia e melancolia não tenha sido causado por nós mesmos.
Somos, estamos e vivemos o deserto porque assim desejamos. Todo relacionamento é permeado de contradições e dificuldades, de abismos e flores, de contentamentos e enraivecimentos, mas quando optamos pela estrada árida e perigosa do egoísmo e da desunião, então começamos a semear ventania onde soprava brisa.
Agora, quando apenas nos avistamos um ao outro em caminhos diferentes, sentimos toda aspereza do deserto que escolhemos nos transformar. Nossas noites são mais longas, nossos dias mais tristes. Tudo parece difícil e longe demais. Somente a saudade alcança.
Noutra realidade não vivemos senão na paisagem abrasiva que construímos. Retratos parecem sombras brotando nos areais escaldantes; bilhetes são como pontas de espinhos que vão surgindo do nada; cartas são tempestades que procuram nos aterrar nos subsolos mais distantes da dor.
E o pensamento, a saudade emoldurada pelas nossas faces, certamente é miragem sempre avistada e jamais alcançada. Quanto mais o pensamento deseja encontrar mais o oásis vai se distanciando até se transformar num lago caudaloso e belo. E naufragamos ao invés de alcançar a margem da esperança.
Noites que dormimos e sonhos que sonhamos tentando fugir do deserto. Mas impossível se ele está em nós, se somos o seu sol e calor, sua sede e sua fome, sua distância e toda desesperança. E não sucumbimos de vez porque as lágrimas, avidamente bebidas, nos faz prosseguir. Mas pelo mesmo deserto.
Não sei até onde vai esse deserto, qual a sua fronteira, qual o seu fim. Não sei se suportaremos mais um dia nessa escalada de sofrimento. Não sei se suportaremos mais uma tempestade ao cair da noite.
Mas sei onde está o jardim e o pomar, a fonte de água fresca e o sombreado. Tudo ao nosso lado, dentro dos nossos corações. Basta que desertemos o deserto e façamos de conta que nossa estrada é outra. Aquela que um dia prometemos seguir.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

Um comentário:

Anônimo disse...

Pois é Poeta Ragel: O difícil é desertar o deserto; é preciso muito preparo nas emoções da nossa vida. Mas não é impossível.
Antonio José de Oliveira - Serrinha-Ba.