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sexta-feira, 26 de julho de 2013

OS ESQUECIDOS (MEMÓRIA E VIDA DEPOIS DO CANGAÇO) - IV


Rangel Alves da Costa*


Não apenas Zé de Julião, mas muitos outros também permaneceram no esquecimento, e mesmo estando em plena convivência com os desmemoriados. Mané Félix foi um destes. Ex-coiteiro e dileto e confiado amigo do Capitão é um exemplo clássico de desconsideração a um passado tão dramático. E dramaticidade construída na vida tão perigosa que levava para servir ao mundo cangaceiro, ainda que não fizesse parte do grupo e fosse trabalho feito apenas quando o bando estava nas redondezas.
Contudo, representava o próprio cangaço com sua ação como fiel emissário, transportador de mantimentos, confidente e guardião de muitos segredos, principalmente da localização do coito. Daí que corria risco demais acaso se deparasse, numa daquelas veredas ou nas povoações, com a volante perseguidora. E era praxe da polícia torturar qualquer um que imaginasse ter ligação com os da caatinga. Assim fez com muita gente inocente e com muito coiteiro, chegando até a matar.
E certamente Mané Félix sentiu na pele esse temor. Ora, seria desonra maior não servir a contento seu amigo Capitão ou colocar em perigo aqueles de quem havia recebido máxima confiança. Porém fatos de nenhuma valia nos novos tempos. Ademais, era um simples ex-coiteiro e não podia esperar muito daqueles que ignoravam os próprios conterrâneos que fizeram parte do bando.
Talvez tivesse seu percurso ignorado até mesmo pelos moradores de mesma rua. E os mais velhos, que sabiam e não podiam negar aquela vida de durezas, simplesmente se faziam de deslembrados. Foi preciso que Alcino alçasse aquela figura humana ao panteão da história local para que suas façanhas fossem, enfim, conhecidas. Assim mesmo numa luta titânica para manter acesa a chama da história municipal, vez que quase sempre sem a almejada resposta.
Alcino sabia - e muitos outros pesquisadores souberam - das corajosas façanhas deste audaz e corajoso ribeirinho, morador nos tempos idos das redondezas da Gruta do Angico, e que cortava difíceis veredas, vencendo penhascos e brigando com espinhos, para que nada faltasse aos amigos cangaceiros. Porém, fama durante a luta, da refrega, das vinditas sertanejas, pois o passar dos anos o transformaria - pela ingratidão da falta de reconhecimento - apenas em mais um sertanejo, um velho e alquebrado sertanejo. E creio que não deveria ser assim.
Reconheço e também me culpabilizo. Reconheço e agora posso dizer num tom de lamentação, que bem poderia me fazer presença constante naquele coito de canto de rua, conversando, dialogando sobre a vida nos tempos idos. Admito, porém, que o estudo na cidade grande dolorosamente me afastou daquelas essenciais raízes sertanejas. Também, muito jovem, ainda não tinha herdado de meu pai o interesse pela instigante saga matuta. 
Mané Félix era muito amigo de meu pai, Alcino, e de vez em quando o encontrava na sala da frente de minha casa com o seu jeito calmo e humilde, nem de longe parecendo o rapazote cúmplice do cangaço e mensageiro a serviço “del-Rei”. Era outro homem, apenas um sertanejo. Mas também vivendo outra realidade. Bem diferente daquela em que vencia bote de cobra e ponta de pedra para entregar a munição ou a carne de bode ao bando refugiado adiante. De vez em quando atravessava o rio e seguia até Piranhas para adquirir mantimentos.
Nas vezes que eu o encontrava, logo percebia a lucidez daqueles que jamais esquecem um passado tão marcante, intrépido e perigoso. Se alguma tristeza o acometia, creio que não pelas aventuras passadas, e sim por haver se mudado de sua beira de rio, de seu Cajueiro, para a sede municipal e ali ficar distante daquele cenário e paisagens que tão bem conhecia, vereda a vereda, cada pedra e cada espinho. Mas tenho certeza que nenhuma mágoa guardava pelo descaso daqueles que o rodeavam.
Leio escritos dando conta que em outros lugares grandes homenagens são prestadas aos seus, reconhecidos ou não como heróis, mas pelo simples fato de terem feito parte do ciclo cangaceiro. Tanto faz que tenham sido do bando, coiteiro ou que estivessem do outro lado, na volante perseguidora. Eventos são realizados, biografias publicadas, os nomes preservados para a posteridade. E em Poço Redondo, a não ser por iniciativa de Alcino, nada disso jamais aconteceu.
Aliás, se não fosse Alcino até a história do município - como também da vizinha Canindé do São Francisco - estaria relegada ao esquecimento. Através de seus estudos e pesquisas, de suas investigações de campo e entrevistas, bem como de seus livros publicados, foi possível que as novas gerações tomassem conhecimento da saga de seu berço de nascimento, dos meandros políticos e da vida de alguns de seus filhos ilustres. E também através dele Poço Redondo passou a ter a devida valorização no contexto do cangaço.
A própria Gruta do Angico talvez seja o exemplo maior da desvalorização - ou até mesmo negação - do passado. Mesmo fincada nas terras do município, lugar de reconhecida e fundamental importância histórica, ainda assim é como se nem existisse no contexto da cultura e da história municipal. O famoso Poço Redondo de tantos cabras valentes, de refúgio e repouso para o Capitão, e também o seu leito de morte, acaba tendo importância apenas externa, nos livros, nos comentários.
Quem não tem nada que represente ou diga respeito ao cangaço, ainda assim induz uma forma de homenageá-lo, de cultuá-lo, tirar algum proveito turístico. Diferente do que ocorre com Poço Redondo, aonde a apatia histórica e cultural chega a ser repulsiva, vergonhosa. O sedento pesquisador que chegar por lá terá de se contentar em fotografar a pracinha Lampião. Um arremedo de homenagem. Até parece que Angico fica nas terras da vizinha Canindé ou no outro lado do rio, em Piranhas.
Quando administrador municipal (em três gestões), Alcino abriu os caminhos de Angico para os estudiosos e pesquisadores, tirou das brenhas matutas os personagens ainda viventes naquela região, procurou a todo custo viabilizar o local como destino turístico. Mas sempre foi impedido pela forte oposição que sempre fazia às lideranças políticas estaduais, principalmente os governantes. Daí não ter conseguido construir um museu ou mesmo um memorial da história sertaneja.
Contudo, depois dele, com suas pesquisas e seus livros, nada mais se fez. Do final da década de 80 para cá não se verificou uma só iniciativa da administração municipal no sentido de transformar a Gruta de Angico em cenário de destaque nacional, de valorizá-la, de torná-la um patrimônio de seu povo, de viabilizá-la na sua potencialidade turística. Ademais, são completamente estranhas à administração municipal as mínimas iniciativas de valorização daquele lugar historicamente tido como o último refúgio do bando de Lampião, pois ali chacinado junto com sua Maria Bonita e mais nove cangaceiros.
Continua...


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Anônimo disse...

Pois é caro professor RANGEL: A história de Zé de Julião (é isto mesmo como você fala no e-mail a mim dirigido): "assunto para um livro". Não tem como esgotar-se em artigos. Da mesma maneira, a história de Chico Pereira. Ainda bem que o Escritor Alcino, além dos livros escritos, deixou rascunhos para seu filho (você), continuar, talvéz nem só a historia de Zé de Julião, como tantas outras que ocorreram no meio do nosso valoroso povo sertanejo. Parabéns pela preservação da História, nem só do cangaço, mas de tantas que vão surgindo. Abraços, Antonio José de Oliveira - Bela Vista -Serrinha-Ba.