SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 3 de junho de 2013

NÃO GOSTO... (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Não gosto e não posso esconder. E não gostar possui suas razões de ser. Daí que:
Não gosto de amar. Mas inevitavelmente amo porque sou levado a crer que a felicidade a dois é possível.
Não gosto de solidão. Mas com ela compartilho e suporto seu vazio porque sei que é bem melhor que ilusórias presenças.
Não gosto de retrato. Mas me carrego 3X4, me olho na estante, sei que estou diante dos olhos de alguém. E através dele avisto o passado, a feição que um dia esteve ao meu lado, o sorriso que não mais é compartilhado.
Não gosto do silêncio. Mas vivo agraciado em tê-lo porque me chega o sopro da brisa, a voz da natureza, a doce melodia no pensamento e minha própria voz interior.
Não gosto de lágrima. Mas sei que é preciso navegar na sua correnteza, sob pena de naufragar na dor que intensamente se derrama. E o pranto molhado que escorre, e tantas vezes a enxurrada mais forte, deixa seguir adiante aquilo que, de modo diferente, nos faria submergir.
Não gosto de relembranças. Mas não posso reviver pessoas, reencontrá-las no pensamento, vivenciá-las uma vez mais sem a lembrança que chega.
Não gosto de dizer não. Mas digo e repito não, nego e contradigo, todas as vezes que o sim já se fartou de ser dito e jamais ouvido e acreditado.
Não gosto de remédio. Mas procuro curar minhas feridas, meus sofrimentos, enfermidades e acasos doentios, com o que estiver ao meu alcance, desde o amor novamente tentado ao chá medicinal ou remédio de bula.
Não gosto de carambola. Mas gosto do seu jeito macio, de sua leveza, de seu jeito inocente de ser. Lembra-me uma pessoa despercebida, mas que se mostra prazerosa depois de experimentada.
Não gosto do relógio da igreja. Mas não posso fugir do tempo, do horário, de cada minuto e segundo dizendo precisa ir, precisa viver. E é na primeira badalada do dia que me reconheço vivo e chamado a realizar.
Não gosto de pimenta. Mas prefiro sua ardência original, seu queimor autêntico, a tudo artificial que me chegue como fogo abrasador, e se entranhando pela alma pretenda provar minha força.
Não gosto de fome. Mas gosto de sentir fome. Porém nenhum paradoxo. A fome é um estado, sentir fome uma necessidade. Daí que toda vez que sinto fome passo a valorizar aquilo que a muitos seria completamente dispensável, como uma farofa de ovo ou um pão sem manteiga.
Não gosto da tempestade. Mas sei que para viver a calmaria é preciso vencer a tempestade. Tenho-a como símbolo da agonia humana, da provação maior, onde os seus dolorosos efeitos também mostram caminhos de superação.
Não gosto de altura. Mas tudo que eleva se mostra no alto, tudo que salva está nas alturas, tudo que protege está lá em cima. E também o sonho alado que voa ao anoitecer, a esperança que plana ao lado da nuvem, a liberdade nas asas de um passarinho. E como voo em pensamento, quanto encontro a lua e a estrela para ser poeta.
Não gosto de adeus. Mas não posso fugir do aceno, do gesto dizendo até mais. Dói-me todo adeus sem retorno; alegra-me a necessidade de partir, de seguir, e um dia voltar. Mas não há um só adeus que não aflija sentimentalmente o ser. E a partida, a estrada, a curva da incerteza.
Não gosto de pensar na morte. Mas sei que não há eternidade, que o ser obedece a um percurso no mundo, uma trajetória na existência. Ademais não posso viver a ilusão de não ter fim, ainda que acredite ser a morte um recomeço.
Não gosto de ir embora. Mas vou. A saudade, se merecer; a espera, se merecida.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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