SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 6 de abril de 2013

OS CAFUNÉS DE MINHA AVÓ (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Sertaneja de nascença e de vivência, minha avó materna era o espelho fiel da meiguice, da amizade, do cuidado com os seus, da imensa religiosidade. Não lembro bem a estatura dela, se era mediana ou baixa, mas apenas porque prefiro recordá-la pequenina, diminuída pelo tempo, recurvada pelos anos.
Dona Marieta era assim, pequenina e imensa em tudo. Depois dos afazeres da casa, após colocar seu vestido muito abaixo dos joelhos, se lançava ao pote de óleo de coco e ao frasco de alfazema. E do quarto saía de cabelo brilhoso e bem penteado, toda cheirosa e faceira. Não via a hora de chegar o entardecer.
Era quando o sol descia e alguma aragem sertaneja começava a soprar, que ela colocava sua cadeira na calçada e ali se punha a responder os cumprimentos e as bençãos de todo mundo que passava. Menino, jovem ou adulto, não havia um sequer que não passasse por ali para receber seu sorriso e sua palavra.
Mãeta, como era chamada por todos, parecia uma rainha sentada num belo trono. Mas era apenas uma velha cadeira na calçada de sua casa de arquitetura antiga e repleta de histórias. Lá dentro, nas dependências e arredores, muito caminhou a história sertaneja e sergipana de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo.
Dona Marieta, minha avó
Seu esposo e meu avô materno, Teotônio Alves China, o famoso China do Poço - dono de bodega e de respeito e admiração -, havia sido amigo tanto da pistola como da cruz. Isto porque recebia naquela casa para repasto e repouso tanto o maior dos cangaceiros, o temido Lampião, como o Padre Arthur Passos.
E foi Dona Marieta, nervosa que só, cheia de tremeliques pelas pernas, que se virou como pôde para servir mesa farta (buchada, galinha de capoeira, carne de bode e tudo o mais) na ocasião em que os dois contraditórios visitantes, Lampião e Padre Arthur, pelas forças inesperadas do destino, acabaram chegando no mesmo dia à residência do amigo China.
Mas muitos daqueles que a avistavam sentadinha na sua velha cadeira nem imaginavam a mulher de um passado tão rico em acontecimentos. Como a avistavam, toda calma e serena, enxergavam apenas a devota de todos os santos, a fervorosa religiosa, aquela que, sem ser beata, todos os dias comparecia à igreja cheia de fé, rosários e terços.
Mesmo já com dificuldades para caminhar, pois sem forças para segurar os passos em certos momentos, ainda assim não deixava de, todos os dias, teimar em se esforçar demais. Saía para fazer compras na pequena mercearia de Lourenço mais adiante (deixando a conta escrita no caderninho até o fim do mês) e também tomava o rumo da igreja matriz, ali mesmo no outro lado da praça onde morava.
Por muito tempo, praticamente fiz moradia na casa dela. Viúva, teimosa que só, decidida a continuar morando sozinha, tinha os netos como maior tesouro. E tinha como netos muitos outros filhos de amigos e vizinhos. Seus olhos brilhavam de contentamento toda vez que um chegava para a reinação de canto a outro. Mas como eu já vivia por lá, então recebia um tratamento diferenciado.
Lembro como hoje. Não choro porque não tenho mais lágrimas, mas tudo tão presença e saudade no meu pensamento. Sentada na calçada ao entardecer, gritava pelo meu nome e eu já sabia o que era. Ela não precisava dizer nada e eu já ia colocando a cabeça no seu colo para que me fizesse cafunés.
Os seus dedos magros corriam por minha cabeça, entravam nos cabelos, e começavam a percorrer seus caminhos suados, tantas vezes sujos das brincadeiras de bola e das correrias. Dizia sempre que ia catar piolhos e lêndeas, mas não, pois sempre fui inimigo dessas indesejáveis criaturas. Então começava a utilizar as pontas dos dedos e as unhas para dar toques macios e cativantes, como se estivesse suavemente esmagando algo indesejado ali encontrado.
Os cafunés sumiram. Ninguém fala ou faz mais cafuné. Minha avó também. Um dia partiu sem deixar o seu colo e suas mãos para minha cabeça de eterna criança.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com      

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