SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 29 de março de 2013

SOZINHA (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Levantou cedinho, varreu a casa e o telheiro, passou gadanho na malhada para recolher ao menos metade das folhas mortas do outono. Depois tirou leite das vacas, separando um tanto para fazer um doce, catou no quintal uma galinha gorda para fazer um cozido ao molho pardo e em seguida foi escolhendo na dispensa outros ingredientes.
Colocou o doce no fogo de lenha, sangrou a galinha para o prato especial, juntou todos os temperos e pertences numa panela grande e cuidou de fazer brasa no fogão de barro da cozinha. O passo seguinte foi juntar os ingredientes para o macarrão, o arroz e o feijão, bem como salada de alface com rodelas de ovos.
Descavou dos cantos uma velha garrafa de aguardente e um vinho de jurubeba, coisas que sabia bem guardadas para ocasiões especiais como aquela. Abriu a antiga cristaleira, deixou uns seis copos reluzindo e colocou sobre uma banqueta talhada artesanalmente, dessas que nem os bons carpinteiros fazem mais.
Em seguida forrou a velha mesa de madeira envernizada com uma toalha bordada à mão, ajeitou um jarro com flores vistosas de plástico e enfim sorriu pelo trabalho feito. Realmente, tudo estava na mais perfeita ordem, cuidado e bem cuidado, com o esmero de quem vai receber convidados muitos queridos e importantes.
Mas para quem a mulher tanto cozinhava, fritava, mexia, ajeitava, varria, forrava, lavava, cuidava? Quais as pessoas especiais que chegariam ali para a visita tão esperada e que seria tão festejada? Quem mereceria daquela mulher tanto esforço, verdadeiro sacrifício, para oferecer o que de melhor ali pudesse existir?
Ninguém. Isso mesmo. Ninguém. Absolutamente ninguém. Aquela mulher, uma solteira e solitária senhora na beirada dos cinquenta anos, mas já parecendo de setenta pelo amargor dos dias e das relembranças de tudo não acontecido, trazia para si aquele trabalho todo sem estar esperando visita alguma.
Não esperava, pois nunca chegava ninguém ali naqueles ermos solitários rincões adentro, nenhuma visita batia à sua porta para uma palavra ou proseado qualquer, mas tinha a máxima e absoluta certeza que um dia sua casa seria invadida por pessoas, por palavras, por olhares, por amizades, por ávidos por um prato e um copo acolhedor.
Filha única, desde muito já sem a presença dos pais, morando nas distâncias dos cafundós, sem ter amizades ou relacionamentos com pessoas dos arredores, vivia os seus dias numa indescritível e dolorosa solidão. Conversava apenas com os santos do seu oratório, os anjos voando ao redor, com a ventania do entardecer.
Para se ter uma ideia, raríssimas vezes tinha colocado os pés na cidade. Sorvete era bicho, butique também, e talvez se assustasse com os modismos da juventude e até da velhice querendo ser jovem demais. Assim, era ausente da cidade e dela praticamente nada conhecia. O que chegava ali era por encomenda, pela mão dos outros.
Inigualável trabalhadora, pois cuidando da criação, do plantio e da colheita, além do cuidado na comercialização, ali mesmo, dos queijos, das compotas de doces e dos bolos caseiros que fazia, amanhecia e adormecia nessa lide sem brecha para outro modo de viver. Pensava em homem sim, queria um ali ao seu lado. Mas bastava aquelas marcas no coração deixadas por um para temer os outros, e também outros sofrimentos.
Talvez fosse essa terrível solidão que a tornava com espasmos de verdadeira insanidade. Ora, arrumar a casa, preparar iguarias e deixar  tudo nos conformes para receber convidados inexistentes, que jamais apareceriam ali, certamente que não era coisa normal de se fazer com tanta convicção e prazer. Mas aquela não era a primeira vez não.
Certa feita colheu flores do campo durante três dias seguidos para enfeitar a casa para um grande baile ao som de uma vitrola e vinis empoeirados. Noutra ocasião se colocou diante do espelho por duas horas seguidas para depois abrir a janela e ouvir serenata recebendo perfumosas flores. De ninguém.
Coitada da mulher, da solitária solteirona. De vez em quando ficava sentada no meio do tempo, debaixo do negrume da noite, sob a luz do luar, esperando o cavaleiro amoroso descer numa estrela candente. Mas nada do que sonhava, planejava ou desejava, jamais aconteceu.
E sempre acontecia assim. Tudo pronto, ajeitado, devidamente servido, depois ela seguia para sua velha cadeira de balanço, do lado de fora, rente à porta. E quem chegasse, se acaso chegasse, sempre a encontraria de lenço enxugando lágrimas, chorando. Esperando a solidão do dia seguinte. E do seguinte.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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