SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 12 de março de 2013

CANTIGA PARA CANTAR CONTIGO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Guardo velhas canções, antigas cantigas, para cantar contigo sobre a relva do entardecer ou em qualquer canto da vida que nos queira receber.
Guardo raridades de baú e de singelezas. Como pode um peixe vivo viver fora de água fria, como poderei viver, como poderei viver, sem a sua, sem a sua, sem a sua companhia...
Guardo jóias douradas, rebuscadas. Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes, só pra ver, só pra ver meu bem passar...
Mas nossa música é silenciosa, é cantiga de cantar a dois, ainda que dois meninos bailando nas rodas da noite, valsando cirandas embaixo da lua que avistamos em qualquer lugar.
Música lenta, suave, apenas a plangência de um canto sem voz, apenas ouvido no acorde que o pensamento dedilhar, que a mente chamar de noturno e fazer ecoar.
Quero uma cantiga para cantar contigo, meu amor. Quero uma cantiga para bailar contigo, meu bem querer. Quero uma cantiga para valsar contigo quando a noite chuvosa chegar à janela aberta.
As cigarras calam diante da melodia, os pirilampos adormecidos ressurgem para ouvir tanto canto. E no silêncio da noite, sem outro ouvir que não a cantiga, sentiremos as vozes interiores repetindo aquilo que ao coração contagia.
Lábio na boca para tirar batom, mão sobre o corpo para rasgar a roupa, olhos fechados de tanto enxergar, a pele queimando o que nos resta de mácula, porque ouvir a cantiga exige a nudez e a despida verdade dos sentimentos.
Era sempre assim, meu amor. Sempre assim que nos encontrávamos para o baile de cada noite. A tarde sumia, as sombras da noite chegavam, as portas se abriam, nossos passos corriam, e de repente a melodia do desejo nos fazia leves, esvoaçantes, bailando um dentro do outro.
Uma noite a música se fez canto, porém sozinha. Nessa noite não houve prelúdio nem noturno, as serenatas foram para outras janelas, o coro da brisa rumou sem destino. Apenas a janela aberta, mas nenhuma porta se abrindo, nenhum passo chegando. A música calou sozinha.
Eis que os ecos tropeçam na ventania, os cantos sussurros engasgam na garganta presa, as vitrolas roubam as músicas para o seu amor, os pássaros silenciam os gorjeios, as cantigas somem quando não há mais quem ouvir. E já não ouvíamos mais qualquer canção.
Eu disse que o amor é canção, que se repete e some quando já não interessa; você disse que o amor é cantiga que vai embora se já não agrada mais. Resolvemos inventar uma nova cantiga, uma nova canção. Mas os meus versos contradiziam os seus.
Abertos os baús da memória e recordação, escancaradas as janelas, pulsantes os corações, entoadas as serenatas, eis que as noites valsam debaixo da lua estrelada. Como eu gostaria que tudo se repetisse.
Ao longe vindo a valsa, ouvir a brisa trazendo melodia de relembrança. São acordes imaginários que se tornam reais nesse imenso salão da tarde, nesse piso de dança do entardecer onde me envolvo no baile sem os braços teus.
A noite tem sua música própria. Serenatas, noturnos, sonatas. Eis que tenho de ouvir uma tristeza de piano, uma solidão ao violino. A lua nada mais é que brilhoso cristal para a valsa da noite; a noite um prelúdio de despedida.
Aprendi a cantar assim, meu amor. De tanto ouvir as danças do pensamento, as valsas das recordações, eis que transformei os versos da melancolia acabei numa música só: Singrar jamais, partir jamais. Ao cais, ao cais...
Queria uma cantiga agora. Apenas uma. E um perfumado sopro do seu lábio cantante...


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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