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sábado, 30 de março de 2013

AS LÁGRIMAS DAS CARPIDEIRAS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Ao saber da morte do mais conhecido e difamado mulherengo do lugar, o bondoso Padre Inacinho se danou, com passos difíceis e doloridos nos seus quase oitenta anos, pelos becos do lugar. Precisava conversar com a viúva.
Sua intenção era implorar para que a mulher não deixasse de prantear profundamente o esposo falecido, ainda que o mesmo, pelos atos pecaminosos terrenos, não fosse merecedor nem de uma vela acesa nem de uma incelença. Até o velho sacerdote conhecia histórias suas de arrepiar.
Tinha chegado ao conhecimento do bom pastor que era intenção da viúva despachar o defunto pro cemitério sem ao menos lhe oferecer sentinela. E tudo porque o enrabichado adulterino, contumaz e deslavado, havia batido as botas exatamente no quarto de uma quenga, em cima da cama de uma de suas tantas amantes.
Para a viúva, em comparação aos sofrimentos que havia passado por aquele homem e as vergonhas que também já havia experimentado, chegando mesmo a ser chamada de chifruda e mulher de segundo uso, a morte do desgraçado era um verdadeiro alívio. Por isso mesmo quanto mais cedo despachá-lo para a cidade do pé junto melhor. Ao menos não tinha de suportar ficar olhando aquela cara safada parecendo sorrir de sua viuvez.
Já estava certa de fazer isso quando o velho sacerdote bateu à sua porta para as condolências e para implorar que oferecesse àquela pobre alma uma sentinela decente, um instante de despedida e reflexão sobre aquela inesperada partida. Certamente uma ou outra alma bondosa acorreria até ali para o último adeus.
Diante do padre, a mulher - que nem parecia com mostras de qualquer pesar - recolheu as palavras duras presas na garganta e decidiu ouvi-lo cautelosamente. Este, coitado, que se mostrava deveras sentido com o funesto acontecimento, explicou-lhe que permitir a sentinela seria um ato cristão distante de qualquer mágoa que ela pudesse ainda estar nutrindo por ele.
E disse ainda que se ela quisesse se mostrar impassível, não chorar nem uma lágrima, não soluçar nenhum pranto pelo falecido, que fizesse assim mesmo, pois não haveria problema algum diante dos olhos do Senhor. Este compreenderia bem os seus motivos.
E afirmou em seguida que ela não se preocupasse, pois iria enviar até ali algumas mulheres para pranteá-lo efusivamente, como um mar de lágrimas para uma pessoa tão importante na terra e que tão cedo se ia. Ainda que o mesmo não passasse de um desacreditado pecador. Por fim, citou a Bíblia, no Livro de Jeremias, 9:17, confirmando a importância das carpideiras no pranteamento do luto alheio:
 “Apressem-se e levantem sobre nós o seu lamento, para que os nossos olhos se desfaçam em lágrimas, e as nossas pálpebras destilem água”. Eis as palavras bíblicas, afirmando que o sentimento verdadeiro pode ser despertado através da falsa lágrima do outro.
Com efeito, carpideiras são mulheres contratadas especialmente para chorar os defuntos em velórios, sentinelas ou outro nome que se dê à despedida. Em troca de pagamento em dinheiro, as profissionais chegam aos locais e começam a prantear largamente o defunto, como se estivessem realmente chorando um parente morto. Afirmam que tal atitude é capaz de despertar nas pessoas os sentimentos pela perda.
Por outro lado, tais lágrimas artificiais e prantos disfarçados servem também para que familiares do falecido, que verdadeiramente nenhum sentimento guardam pelo acontecido, lavem suas mãos e repassem para outras pessoas uma ideia do quanto era querido. Quer dizer, ao menos para os outros, muitas lágrimas de dor foram derramadas.
Contratadas pelo padre, verdade é que mal o defunto foi colocado na sala e as carpideiras chegaram. Poucas pessoas estavam na casa, mas bastou que as falsas enlutadas chegassem para que um barulho descomunal tomasse conta do quarteirão. Choro alto, choro baixo, choro de todo tipo; lágrimas escorrendo de molhar a sala; gestos de dor que chegavam aos espasmos e aos delírios. Aflição, a maior das aflições!
Mas de repente, ia uma carpideira, afastava o negro véu e tascava um beijo na boca do defunto; depois outra ia e só faltava subir em cima do corpo morto; e mais outra acariciava o homem e soltava palavras de amor, dizendo, dentre outras coisas impublicáveis, que não podia mais viver sem os seus beijos, sem as noites de amor, sem as safadezas que ele era mestre em praticar.
Desconfiada, olhando tudo dum canto, quando o chororô já havia chegado às raias das explícitas declarações de amor, a viúva se dirigiu até junto delas e arrebanhou o véu que cobria o rosto de cada uma. E lá estavam as quengas do falecido, as amantes desavergonhadas do homem. E nesse instante, quando já não podiam esconder mais nada, começaram a implorar para se despedir do gostosinho.
Saíram de lá escorraçadas, debaixo de cabo de vassoura e de taca de couro cru. E o defunto, quase à meia-noite, foi devidamente expulso de casa. E mandado pra onde merecia ir e não sair nunca mais, segundo a viúva, desde então autoproclamada solteira e completamente disponível.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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