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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

SINHÁ FILÓ E OS TRÊS GATINHOS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Não sei por que um proseado sobre Sinhá Filó e os três gatinhos se a coitada da velha criava também um ratinho. União difícil, mas aos olhos dela tudo apenas bichinhos. Na verdade, o que mais gostava na vida era vê-los correndo por dentro da casa, arreliando em rebuliço.
Desde muito que a boa mulher, além de três gatos de estimação, criados como filhos fossem, recebia a visita de mais de dez, todo dia e a qualquer hora. Quem passava pela frente do casarão ouvia miado; quem entrava sem pedir licença corria o risco de ser azunhado.
Mimoso, Sedoso e Traquina, eis o nome dos bichos. Mas também nomeava os que chegavam ali em busca de comida, de descanso, de brincadeira e  arreliamento. Peludo, Caramelado, Rabugento, Gafanhoto, apenas para lembrar alguns nomes.
E todos, os seus e os visitantes, indistintamente – menos o ratinho - eram Xanim. Xanim pra cá, Xanim pra lá, e ouviam o que ela dizia para, com distinta obediência, parar a correria, deixar de miar, solta o fio do novelo de lá, deixar o rato em paz.
Ah, sim, havia um rato também. Um só. Sinhá Filó criava gatos e também um rato. Defendendo este diante da gataiada, tudo fazendo para que um só não se tornasse vítima de tantos, redundou num final triste e comovente. Não gosto nem de lembrar.
Mimoso, Sedoso e Traquina, os três gatinhos de Sinhá Filó, tudo faziam para conviver bem com o rato. Na verdade, tudo dolorosamente suportado, fingido, falseado, pois o que muitas vezes queriam era mesmo abocanhar o pequenino roedor. E não faltavam amigos instigando a isso.
Por isso mesmo os três eram constantemente zombados pelos outros gatos visitantes. Chamados de frouxos, gatinhas, xaninhas, ouviam calados para não despertar a ira de sua dona. Sabiam que não tinham onde morar se fossem expulsos dali. Exemplo maior acontecia com os visitantes, que constantemente estavam ali porque não tinham onde comer e descansar.
Tentaram explicar essa situação aos outros gatos, mas foi pior. Não sabiam, porém, que eles já estavam planejando armar uma emboscada para lançar as unhas afiadas no pelo do ratinho. Até que Peludo, por dever de amizade, chamou-os num canto e contou tudo.
Um minuto depois e Sinhá Filó já estava sabendo. Como a notícia chegou até ela? Ora, os três apareceram acompanhando o rato e em seguida, fazendo gestos de azunhamento e mordida, acenaram em direção ao local onde estavam os outros gatos.
Mesmo encurvada e cheia de reumatismos, a velha se apressou em direção ao cabo de vassoura e saiu veloz igual a menina nova. Raivosa, furiosa, cheia de ira e embrutecimento, desceu a madeira no lombo dos gatos e disse que nunca mais queria ver nenhum daqueles entrando na sua porta.
A raiva e o esforço foram tantos que a mulher acabou adoentada. Assim que voltou à sua  cadeira de balanço começou a sentir o corpo todo doer, a respiração chegar mais lentamente, o corpo idoso tremular de calor e frieza.
A partir desse dia, sem força suficiente para os afazeres cotidianos, descuidava de tudo, deixava seus gatinhos sem comida e sem água e muitas vezes nem lembrava que existiam. Chegava gente para alimentá-la, cuidar do asseio, dar remédio, não deixar nada faltar. Mas os bichanos ficaram completamente esquecidos.
A fome era tanta que Mimoso disse a Sedoso que não suportava mais nem ficar em pé. Sofrendo também, Traquina propôs que matassem o rato e dividissem o alimento. Mas Sedoso rejeitou na hora a saída encontrada.
Disse que em homenagem à sua dona, agora tão doente e parecendo esquecida de tudo, não seria justo quebrar sua confiança matando aquele que também era como seu filho, ainda que um simples rato.
E opinou sobre o melhor a fazer: Ir embora dali. Cada um se segurar na força que tivesse, lamber pela última vez o pé de sua dona, seguir até a porta e daí em diante entregar-se aos braços da desumanidade, cruzando os mais impiedosos caminhos.
Mimoso foi o último a sair. Da porta, olhou pra trás e avistou o rato choroso, de lenço à mão, em tempo de se acabar de tristeza. Cuide bem dela, disse o gato à soleira. E os três seguiram seus destinos de gatos envelhecidos, magros, desesperançados.
E pela porta dos fundos, no mesmo instante, os outros gatos começaram a entrar. Quando o rato se virou encontrou línguas salivantes e dentes esfomeados. Perdido, assustado, sem saber o que fazer, pulou no colo da velha.
Ainda com medo, os gatos não avançaram. Mas ficaram ali esperando a descida do rato. Mas ele não desceu. Dois dias depois morreu juntamente com Sinhá Filó. No mesmo instante, no balançado triste da cadeira de balanço.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Ana Bailune disse...

Um amigo fiel, até o fim, mesmo que motivado pelo medo. Linda história!