SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

OLHA A BARATA! (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Amaldiçoada ou injustiçada, nojenta ou inofensiva, asquerosa ou inseto normal igual aos outros, verdade é que basta ecoar a pronúncia “olha a barata!” para o mundo revirar.
Tem gente que desmaia no mesmo instante do anúncio da presença da danadinha sorrateira, astuta demais. Pessoas correm desatinadas, gritam, chocalham, arrepiam, sobem em cadeiras e até em guarda-roupas.
Já ouvi falar sobre gente que maluqueceu ao acender a luz e encontrar uma baratinha sorridente logo adiante. Muitos já foram para o outro mundo ao se deparar com uma blattodea subindo pelas pernas ou passeando por cima das roupas.
Uma guerra entre nações já foi declarada por causa de uma barata. O governante desafeto chamou o outro de blatella periplaneta parahormetica. Ao ser informado, o outro mandou traduzir e enrubesceu: fora chamado de barata de esgoto, barata cascuda, barata de cozinha. A guerra foi declarada e demorou dez anos, sem vencedores.
Certa feita uma sinantrópica de marrom aquoso desceu, em plena igreja e na hora da missa, pelos peitos murchos de uma beata, e o que se viu depois foi cena do outro mundo. A carola tanto pulava como gritava, sacudia-se toda e levantava incessantemente a barra do saião.
Como nem o padre nem os fiéis sabiam o que realmente se sucedia, o sermão teve de ser interrompido e a missa logo se transformou num ritual de exorcismo. Todos juravam que a mulher estava possuída. Só não sabiam que por uma barata.
Quando, depois de muita água benta despejada e pancadas com cruz de madeira pelo corpo todo, o assustado e desconjuntado inseto caiu ao chão, outra beata lembrou que o disfarce do “coisa ruim” o faz aparecer num ser qualquer na tentativa de enganar. E que aquela barata só podia ser sua presença.
Então jogaram a coitada da mulher num canto e começaram uma caçada enlouquecida ao “coisa ruim” travestido de barata. E esta, ainda que machucada pelas pancadas recebidas por cima das asas, juntou as forças que tinham e correu desesperada em busca de salvação.
A incansavelmente perseguida, após se salvar de pontada de guarda-chuva, de solados de chinelos e até de bíblias arremessadas em sua direção, já estava saindo pela porta da frente quando percebeu um garotinho entrando na igreja.
Olhou pra trás e para os lados, mas tudo tomado de pés e objetos para destruí-la, matá-la de vez, e só viu saída seguindo em frente. Mas quando olhou adiante para correr, só encontrou escuridão. Estava bem debaixo do sapato do garotinho, entre o chão e o solado.
Pelo amor de Deus não me mate não, pois sou apenas uma inocente baratinha em fuga. Mas o menino não ouviu. Nem ouviu nem desceu o pé. Já entregue às orações de despedida, o inseto esperava apenas ser terrivelmente esmagado. Esperou mais um segundo, e nada. Nada do pé baixar de vez e fazer seus miolos esbranquiçados espalharem pelo chão.
Pisa, pisa, pise logo seu moleque desgraçado, pisa. Gritavam as beatas, até fazendo ameaças em sua direção com os objetos que tinham em mãos. Pisa logo moleque safado, pise logo, esmague logo essa vagabunda. Aí a coisa começou a desandar.
Ao ouvir na sua igreja palavras como moleque safado e vagabunda, o vigário resolveu imediatamente intervir. Gritou que não aceitaria termos chulos no templo cristão e que se elas – as beatas – quisessem falar asneiras que fossem para o lado de fora, para o meio da rua. E expulsou-as raivosamente.
Tudo isso acontecendo e o garotinho sem ao menos saber do que se tratava aquela confusão toda. Ali parado, estático, com um pé no chão e outro meio levantado, não imaginava que era ele a causa daquilo tudo. E ele porque se houvesse pisado logo no chão já tinha acabado aquela história toda.
Enquanto isso, a barata, que por alguns segundos havia se desesperançado de vez, sentiu que poderia se salvar, correr imediatamente debaixo daquele solado. E foi isso que fez. Quando o menino baixou o sapato e pisou no chão, apenas um pedacinho de asa ficou no lugar.
Após a fuga, e para evitar encontro com as beatas indignadas lá fora, a barata não viu outra saída senão ir se esconder no confessionário. Ali se pôs num cantinho para recuperar-se dos machucados e do susto da quase-morte.
Depois do terceiro dia ali silenciosamente escondida, mas ouvindo as aberrações maiores do mundo nas confissões, resolveu que não seria digno para uma barata continuar vivendo no mesmo mundo de tantas safadezas e traições. As confissões ouvidas causaram tanto enojamento do ser humano que resolveu tomar uma terrível decisão.
Posicionou-se bem adiante da portinhola da casinha dos pecados. Assim que o padre saiu do confessionário pisou em cima de alguma coisa provocando um breve estalido. Quando levantou o pé viu o corpo da barata transformado em massa esbranquiçada. Coisa mais feia, nojenta, asquerosa.
Entristecido por haver tão cruelmente matado um ser vivente, ali mesmo rezou missa. Assistida por dezenas de baratas chorosamente molhadas que chegavam de todo lugar.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

2 comentários:

Ana Bailune disse...

Tadinha... as baratas são criaturas odiadas, tanto quanto as cobras, aranhas, e até formigas e sapos! Tudo o que tememos, destruímos, e não damos uma segunda chance. Morro de medo de aranhas, e se aparece uma, eu grito ao meu marido: "Mata!" Ultimamente, tenho tentado - eu disse tentado - agir diferente: ao invés de gritar 'mata!', eu só peço que a capture e coloque lá fora na mata, bem longe.

Anônimo disse...

Bom seria se esses bichinhos também tivessem o dom da fala. Assim,eles poderiam argumentar,esclarecer o que desejam quando aparecem em nossa casa,evitando assim, tanta repulsa e desejo de matá-las.