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quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O HOMEM DOS DIAS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Era triste ver o homem assim, mas era desse jeito mesmo que acontecia, e todo dia. Do amanhecer ao anoitecer, e muitas vezes vagando pela madrugada, lá seguia ele parando um e outro para perguntar se tinha perdido algum dia na sua vida.
Isso mesmo, a cada um que encontrasse perguntava se estava desgostoso com os seus dias, se havia algum que preferia não ter vivido, se preferia esquecer-se de ter existido em algum deles. E se a pessoa respondesse que era precisamente aquele dia, então o coração do homem chegava a palpitar.
Mas para fazer o que com os dias dos outros? Melhor perguntando, o que o homem tinha a ver com os dias não vividos dos outros e o que pretendia fazer com eles? Ninguém sabe ao certo responder, mas a verdade é que depois de ouvir o que desejava saía quase correndo, num passo apressado e mais que instigante.
E o coitado do homem, se tomasse notícia de qualquer dia perdido na vida de alguém, imediatamente saía a procurá-lo, corria a catá-lo nos escombros do passado, nos monturos da memória, ou mesmo nos lugares próximos de tantos ou poucos não acontecidos. Mas por que o desvalido do homem agia assim?
Seria louco, demente, atordoado, ou apenas um brincalhão das desventuras vividas ou dos instantes não vivenciados pelos outros? Seria alguém fugido do hospício, um psicopata pelas não realizações, ou apenas alguém que precisava demais encontrar e tomar para si os infortúnios, as infelicidades e os pesares do próximo?
Não posso afirmar com certeza o que fazia o coitado do homem agir, o que o motivava e o que pretendia fazer com os dias obscuros dos outros. Soube dessa história e por muitos dias andei solitariamente no meio da noite, ainda que chovendo ou fazendo frio, para ver se encontrava a tal pessoa, o homem dos dias.
Eis que numa madrugada de persistente sereno, de vento cortante e frio dilacerante, peguei meu guarda-chuva e resolvi dar uma volta na pracinha mais próxima. Tudo estava silencioso demais, com calçadas e pisos molhados e espelhando a luz que se derramava dos postes. Nem um pé de pessoa passando, apenas o barulho do vento e das folhagens se contorcendo.
Já estava na praça quando vi alguém ainda longe, apenas um vulto virando uma esquina, e lentamente caminhando naquela direção. Ansioso, não menos temeroso, aguardei-o se aproximar ainda mais e assim saber se era o tal homem. E se o fosse logicamente que chegaria até onde eu estava para fazer a estranhíssima e misteriosa pergunta.
Sempre lentamente, de cabeça baixa, veio caminhando até se posicionar diante de mim. Somente nesse momento levantou o rosto e – mesmo com as poucas luzes da madrugada – pude perceber o desenho de uma pessoa absolutamente frágil, melancolicamente entristecida, nada que pudesse apresentar qualquer perigo.
Mirei bem nos seus olhos e ouvi saindo de sua voz pesarosa: “Boa noite moço. Desculpe, mas posso fazer uma pergunta?”. Retribui a saudação e afirmei que sim, que podia perguntar o que quisesse.
Então ele continua, e agora com a instigante pergunta: “Moço, no passado ou mesmo nos dias mais presentes, o rapaz teve algum dia daqueles que considera como perdido, daqueles que preferia não ter vivido e que até hoje prefere esquecer?”.
Juro por Deus que tive pena do homem enquanto o ouvia falar. Não sei bem, mas as suas palavras eram tomadas de tristeza, de dor, angústia, aflição, desespero, enfim, sentimentos de dilacerar coração. Foi assim que senti. Meu Deus, disse a mim mesmo, já sei o que se esconde por trás dessa pergunta, o que verdadeira reside nessas entrelinhas desesperadas.
Tomando por uma terrível aflição - talvez ainda maior que a do homem - consegui encontrar forças para dizer que só responderia se antes me dissesse por que precisava tanto saber dos dias não vividos pelos outros. Pensei que ele não responderia, mas pelo contrário. No mesmo instante baixou a cabeça e com os olhos lacrimejando respondeu:
“É que não desde muito não tenho dias felizes, não sinto alegria nem tenho qualquer prazer nessa vida. Por isso que vivo catando os dias infelizes dos outros, aqueles que ninguém quer, para juntar tudo e ver se consigo transformá-los num instante de felicidade em minha vida”.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com   

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