SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 11 de setembro de 2012

PREPARANDO A TOCAIA, EXECUTANDO A EMBOSCADA (Crônica)


                                     Rangel Alves da Costa*


Antes mesmo de o galo cantar, ele já está em cima do lombo do cavalo matreiro. Pega a estrada, corta vereda, de vez em quando olha pro relógio de bolso, mira constantemente de lado a outro, até, uns cinco quilômetros adiante, passar defronte a uma moradia sertaneja simples.
Passa sem olhar para os lados da casinha e segue um pouco mais. Logo adiante faz a curva e volta pelo mesmo caminho, de montaria calma, tranquila, recebendo na cara os primeiros raios da manhã. Chegando novamente na malhada de casa, desmonta do animal, esquenta um café e depois volta pra porta da frente com xícara na mão, e depois de mirar o horizonte diz a si mesmo que mais tarde vai ter com o coronel.
Vai se avistar com seu patrão porque já sabe tudo que deve fazer para não cometer nenhum erro ou deslize. Já sabe quantos quilômetros são de um certo ponto até a casa do desafeto, já sabe quanto tempo o homem gasta saindo de lá montado até o ponto de referência, e já sabe também que dependendo da hora que saia antes do meio-dia do dia marcado ele já estará estrebuchado no chão varado de bala. E mortinho da silva, morte de tocaia, de emboscada bem preparada.
Já chegando o entardecer, porém antes de sair em direção ao casarão do coronel, ouviu um cavalo riscar na malhada e uma voz conhecida de outro jagunço gritar que o coronel estava apressado pra saber dos preparativos, e que fosse até lá naquele mesmo instante. As ordens do homem eram para ser cumpridas imediatamente. Virou a dose de pinga, colocou fumo de corda pinicado na palha seca de milho, enrolou cuidadosamente, correu a língua selando, tocou fogo na ponta e num instante já fazia poeira na curva da estrada.
Entrou na grande sala de móveis rústicos e brilhosos, tudo na madeira de lei, e avistou seu patrão de costas, virado pra janela lateral aberta e tendo as duas mãos juntadas pelo lado detrás. A posição era pensativa, meditava, ou apenas tramando na mente violenta e traiçoeira a morte de qualquer pessoa. Mandava matar por brincadeira. Se tinha raiva, mandava matar; se queria aumentar suas terras, coitados dos vizinhos; se via alguma coisa como desfeita, então a consequência seria imediata.
Sem olhar pra trás, apenas pressentindo que o seu jagunço preferido havia acabado de entrar porta adentro, falou compassadamente: “Já tá tudo preparado, já sabe que não haverá nada que impeça a realização do serviço? Dessa vez não pode falhar. É sua última chance. E tu mesmo sabe que não sou de perdoar. Preciso daquele homem crivado de bala, esquecido no meio da estrada e com as formigas lhe saindo das ventas. Não quis me vender o seu terreno por bem, então vai ser pelo mal. E tudo de mão beijada...”.
Naquele momento, o jagunço agradeceu por tudo na vida não ter de olhar dentro do olho do seu patrão. Temia que isso pudesse acontecer. Não haveria de encontrar nada de bom dentro daquele olhar. Crueldade, sangue, violência, sanha assassina, só isso. O brilho do olho do homem não espelhava outra coisa. Disse apenas que no dia seguinte traria o resultado e deu a volta com mais de mil.
Subiu no cavalo e saiu galopando lentamente, pensando em quantos já tinha emboscado e matado, quantos já havia tocaiado e deixado estirados ao largo da estrada, das veredas, dos caminhos sangrentos sertões adentro. Mas daquela vez parecia ser tudo diferente, ainda que sua vítima nem chegasse ao solado das botas de tantos outros cabras, até mesmo da estirpe de coronel, que já havia derrubado.
E tudo porque havia falhado uma vez. Jamais tinha perdido uma investida sequer, mas falhou e o coronel não perdoaria mais qualquer erro. Verdade é que planejou tudo certinho, mas esqueceu o principal: o momento, num espaço de duas horas, que o futuro defunto deveria passar por ali. E ele passou, mas cedo demais. E ele havia chegado, escolhido o melhor tufo de mataria, e se preparado para o disparo certeiro, porém tarde demais. Ficou ali até o anoitecer e nem sombra de sua vítima.
Por isso mesmo aquela preocupação toda. O lugar de espera seria o mesmo, pois mato fechado de beira de estrada e com vista livre desde a curva do caminho e mais ainda quando o viajante fosse passando em frente. E pelo percurso já feito por ele mesmo, não tinha dúvida que pouco depois das dez da manhã, não passando do meio-dia, as patas do cavalo já começariam a ser ouvidas. Não haveria como falhar dessa vez.
Dormiu e até sonhou fazendo a dita tocaia, levando a efeito a emboscada tão bem preparada. Acordou cedinho e já pronto para o serviço. Não tomou nenhum gole de café naquela manhã, mas já a primeira dose do dia. Cachaça com raiz de pau o tornava mais afoito, esperto, destemido. E tomou outra e mais outra antes de botar o chapéu na cabeça, acender o cigarro de palha, pegar a arma e a cartucheira, e sair.
Dessa vez ia caminhando mesmo. Andou uns dois quilômetros pela estrada e mais adiante entrou no mato. E cortando a mataria, passando por cima de pedra e espinho, afastando os tocos de catingueiras e se livrando das pontas afiadas dos quipás, foi lentamente chegando ao lugar da emboscada.
Não era bosque, mas tufo de mato apropriado à tocaia. Quem estava escondido lá dentro via quase tudo que se passava na estrada, mas o viajante nem percebia que logo adiante uma arma cruelmente faminta estava apontada pra sua cabeça ou para outra parte do corpo. Era um desenho de triste e lamentável cena:
Dois olhos sanguinários se apertando para mirar melhor, o cano da arma correndo por um braço e o dedo da outra mão em posição de apertar o gatilho. E a ponta da arma, no lugar da cuspida, dançando lentamente acompanhado a vítima. E de repente o posicionamento firme do jagunço, o cessar até de respirar para não perder a mira. A folhagem estremece, o passarinho voeja, o fumo do cano se espalha. Um cheiro quente, de chumbo, de ferro, de brasa, de sangue. O tiro foi dado. Um cheiro de morte. Nenhum grito, apenas um baque surdo na terra espinhenta. Um corpo estendido no chão. A morte.
Dessa vez não errou. O jagunço cumpriu com seu ofício de matador; o coronel com sua função de mandante; e o pobre nordestino com seu destino de vítima. E eu, que não tenho nada a ver com essa história, vou saindo de fininho. E me benzendo, fazendo o sinal da cruz.

  

Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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