SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 6 de setembro de 2012

PALAVRAS SILENCIOSAS - 5


                                                 Rangel Alves da Costa*


“Já está com sono?”.
“Não. Essa luz apagada me faz refletir sobre muitas coisas...”.
“Realmente, a luz apagada dá ao nosso pensamento mais liberdade”.
“Sim, pois vamos procurando iluminar aquilo que queremos enxergar na mente...”.
“Bela filosofia...”.
“Não, a mais pura realidade”.
“E se de repente acendermos a luz?”.
“Aí desaparecerá o mistério da percepção...”.
“Percepção construída através do escuro...”.
“Exatamente. Saiba que estou imaginando agora situações até dolorosas...”.
“Então por que não mudar para um pensamento melhor?”.
“Impossível. É uma realidade da qual a gente jamais poderia fugir...”.
“E por que só enfrentá-la na escuridão?”.
“Eis a fragilidade do homem, a sua inconcebível fuga...”.
“Por quê?”.
“Medo de olhar bem no olho de tantas realidades que nos circundam e das quais procuramos sempre fugir...”.
“Mas de quais realidades está falando?”.
“Da outra realidade. Da realidade da vida que neste momento está sendo vivenciada nas marquises, nos barracos, pelos morros e favelas, nas crianças dormindo ao descampado florido dos jardins...”.
“Cortante tal realidade. E mesmo a essa hora o frio cortante, a barriga vazia, a criança chorando, a panela vazia, o desespero e a agonia dos pais...”.
“Sem falar nos barracos caindo, nas casas ameaçando desabar, na violência na porta e dentro de casa, na polícia que chega e vitima qualquer um, no marginal que chega e submete a todos...”.
“Sem dúvida, uma realidade bem diferente da nossa...”.
“Sim, muito diferente. Não somos ricos, mas temos esse leito, esse quarto, uma luz para ser acesa e apagada, um travesseiro para o sonho, uma manhã, um sol, um alimento...”.
“E também a vida...”.
“Isso mesmo. Muitas vezes lhes falta até a vida. Muito do que ali acontece ou não é vida ou não é dignamente viver...”.
“A mesmice dos dias, a pobreza de sempre, a mesma dor e o mesmo grito...”.
“O olhar que olha espantado, a mão que quer ser erguida, a mão que realmente se ergue. E o não...”.
“Será que conseguem ao menos dormir tranquilamente?”.
“Certamente que não, e certamente que sim...”.
“E por que certamente que não e certamente que sim?
“Não porque ninguém consegue dormir tranquilamente carregando tantos problemas, com os filhos ainda famintos, com uma manhã cujo pão será o bem mais desejado...”.
“E?...”.
“E certamente que sim porque até as pedras adormecem depois que desabam da ribanceira. Os dias são tão árduos que as pedras desabam e acabam adormecendo...”.
“E talvez até sonhem...”.
“E sempre têm sonhos melhores que os nossos”.
“Por quê?”.
“Porque qualquer sonho azul já é arco-íris para quem não tem horizonte...”.
“E nós ainda reclamando da vida...”.
“Mas devemos reclamar sim”.
“Seria melhor se agradecêssemos sempre...”.
“Também. O agradecimento pelas graças recebidas é próprio de quem reconhece o poder divino. Mas reclamar de nós mesmos, e principalmente porque só pensamos na escuridão e não agimos perante a luz...”.
“Mas como poderíamos interferir nessa imensa tragédia social?”.
“No passo da formiguinha, na ação da formiguinha...”.
“Entendi. Por menor que seja, mas fazer nossa parte”.
“As formigas constroem assim. Lentamente vão carregando folha a folha...”.
“E não importa o próximo, esperar pelo outro...”.
“Nunca. Apenas fazer a nossa parte!”
“Quem dera, quem dera...”. 


  
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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