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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 29 de setembro de 2012

BAÚ DE TUDO (Crônica)

                       
                                      Rangel Alves da Costa*


Na vida, seja passado ou presente, procuro as relíquias existentes para guardar no baú. Que não se imagine, porém, que o depósito de minhas raridades seja um caixote antigo de madeira, uma mala grande encourada ou um porão empoeirado.
Tenho também um baú assim, herança familiar, passado de geração a geração, mas conservo tudo que aprecio e tenho orgulho numa arca muito maior, com muito mais dimensão, e que se estende deste os vãos de minha casa até onde eu estiver.
Por dentro das paredes de minha casa estão espalhadas velharias, objetos antigos e mais recentes, presentes doados a outros, móveis que um dia fizeram a feição das salas e varandas, coisas simples inscritas na história, pedaços de uma realidade que não pode ser esquecida. O que talvez não signifique nada aos olhos de muitos, para mim é raiz do meu caminho.
E se estende até onde eu estiver porque no meu corpo, especialmente no coração e na memória, existe um amplo espaço para que muito também seja guardado. Não são objetos, quadros, partituras, imagens sacras, lustres ou gramofones, mas relíquias assemelhadas: as lembranças, as recordações, o conhecimento dos fatos e o seu reviver para preservar.
Mas abro a porta de casa e me deparo com séculos, com outras vidas, outros hábitos, costumes e tradições. Em confronto com as tecnologias presentes, constatam-se ainda mais a utilidade e a razão de ser daquilo tudo em tempos idos. Porque o novo também se tornará velho, e relíquia se tiver algum valor, então vejo tudo como história, a do passado e a do presente.
Contudo, vou dizendo logo o que não tenho e que me faz tanta falta. Ainda não consegui o velho e precioso oratório de minha avó paterna. Antigo, belíssimo, de madeira cuidadosamente trabalhada, de verniz escurecido, anda meio maltratado, mas justifica-se. Minha avó ainda está entre a gente, embora não enxergue mais nem dê mais um passo sozinha. E não seria justo que o neto tentasse agora trazer para junto de si aquilo que, mais que tudo, pertence à sua fé.
Também não tenho alguns objetos que enchiam de contentamento meu saudoso avô, também paterno. Ainda rapazinho, toda vez que eu chegava perto dele perguntava a hora só para vê-lo puxando do bolso um maravilhoso relógio. E ficava pensando em como conseguir um igualzinho aquele. Quando do seu falecimento, no descuido com que tratam as relíquias, o relógio acabou sumindo. Ainda pergunto a um e a outro, porém o suspeitoso silêncio sempre prevalece.
Era um sertanejo iletrado, matuto de gostar de coisas simples, mas na sua simplicidade sabia muito bem apreciar a autêntica cultura nordestina. Fervoroso devoto do Padim Ciço, todas as vezes que seguia em romaria junto com minha avó até Juazeiro, de lá retornava com discos e mais discos, de autêntico vinil, de repentistas, cordelistas e violeiros. Os repentes lhe caíam tão bem na alma que de vez em quando recebia duplas de trovadores na sua moradia sertaneja.
Os meus outros avôs, os maternos, deixaram mais história do que propriamente relíquias materiais a serem preservadas. Hoje fazem parte dos livros de História, dos opúsculos cuidando da saga cangaceira, mas não porque tivessem participado do bando do Capitão Virgulino, o Lampião. Sua relação com a vida cangaceira foi de acolhimento e amizade, confiança e companheirismo.
Todas as vezes que Lampião e o seu bando chegavam às terras sergipanas de Nossa Senhora do Poço Redondo, era na casa dos meus avôs China e Marieta que recebiam acolhida, que se fartavam de buchada de bode e sarapatel apimentado. Na residência é que se deu o célebre encontro entre a arma e a cruz, entre o cangaço e a religião, entre Lampião e Padre Arthur Passos. Saindo da casa, seguiram até a igrejinha para a missa da padroeira. Nesse dia, o vigário acolheu os cangaceiros no seu templo sob a condição que deixassem as armas do lado de fora. E assim foi feito.
Mas voltando ao meu baú, à minha moradia e à arca na minha mente, digo que ainda é muito pouco, um quase nada, o que guardo pelos cantos. São apenas coisas, objetos, pensamentos e recordações. Quem dera, ao menos, que num tempo mais distante, alguém escrevesse uma crônica para dizer o que deixei como herança e que precisa ser preservado.



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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