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terça-feira, 28 de agosto de 2012

O INTERESSANTE CASO DO HOMEM DAS CITAÇÕES BÍBLICAS (Crônica)


                                             Rangel Alves da Costa*


Numa distante povoação interiorana, lá muito além de todas as curvas do mundo, morava um homem com um modo bastante peculiar de se dirigir às pessoas.
Qualquer pessoa que lhe cumprimentasse, desse um bom dia ou boa noite, dissesse alguma coisa em sua direção, logo em seguida, ao invés de ouvir resposta normal, tinha de ouvir uma referência bíblica, e que tanto podia ser a indicação do número de um salmo, de um livro, de um capítulo ou versículo.
Por exemplo, ao invés de dizer “que a paz do senhor esteja convosco”, dizia apenas João, capítulo 20, versículo 21. Com efeito, no livro bíblico está escrito: “Disse-lhes outra vez: A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio a vós”.
Até o reverendo paroquial ficava de queixo caído sem saber como um analfabeto de pai e mãe sabia de cor e salteado todas aquelas passagens bíblicas, sem errar uma vez sequer nas suas afirmações. E o pior que muitas vezes sentia-se até constrangido em rezar missa tendo o homem na igreja, vez que em qualquer deslize ele gritava e dizia do erro cometido. E imediatamente corrigia. Que vexame para um sacerdote!
O homem pouco saía de casa, mas quando botava os pés adiante da porta citava a Bíblia de passo em passo. Caminhando com um velho amigo, ao avistarem duas mocinhas entretidas em falar da vida dos outros, o acompanhante foi logo dizendo que coisa mais feia duas fofoqueiras naquela idade. Mas o homem apenas disse: Livro I de Timóteo, capítulo 5, versículo 13. Contudo, nunca dizia do que se tratava.
Porque não dizia, não demorou muito e aquele que o acompanhava entrou na igreja correndo para perguntar ao sacerdote o que estava escrito na passagem bíblica citada pelo estranho amigo. E o velho religioso, para ter segurança na resposta, recorreu ao livro sagrado e afirmou:
“Ouça o que diz a Bíblia: ‘Além disso, aprendem também a viver ociosas, andando de casa em casa; e não somente ociosas, mas ainda tagarelas e intrigantes, falando o que não devem’. Acaso vocês se depararam com o festim das fofoqueiras?”.
Certa feita, estando à noite sentado num banco da praça, eis que passa bem ao lado o carrancudo mais temido do lugar, com fama de larápio, perigoso esbulhador e até apontado como assassino de mando. Passou com faíscas nos olhos, mas ao avistá-lo sentado deu-lhe um bom dia acompanhado de cusparada. E seguiu adiante, mas não sem antes ouvir: Jó, capítulo 24, versículo 14.
E lá se foi o perigoso malfeitor em busca da decifração do sacerdote. Ao avistar o visitante, o da igreja só não desmaiou por medo de acontecer o pior, ser forçadamente adormecido de vez. E com a boca trêmula, sem quase poder segurar a Bíblia, respondeu ao carrancudo.
“Em Jó, capítulo 24, versículo 14, consta o seguinte: ‘O homicida levanta-se quando cai o dia, para matar o pobre e o indigente; o ladrão vagueia durante a noite’. Mas você não é nem um nem outro, não é mesmo meu filho?”. E o indivíduo lançou-lhe uma resposta que o fez tremer: “Quanto cobra pra tirar os dois pecados?”.
No outro dia, enquanto se preparava para bebericar uma dose dupla de aguardente na sacristia, eis que chega um jovem e apressado casal. Um tanto desconfiada, ela disse que estava ali para saber o que significava Ezequiel, capítulo 16, versículo 33. E ele, mais desconfiado ainda, precisava urgentemente conhecer o que queria dizer Eclesiástico, capítulo 19, versículo 3. Os dois, quase ao mesmo tempo, ouviram essas coisas estranhas daquele homem que falava pra ninguém entender.
O velho sacerdote, já conhecendo em profundidade o sentido das duas passagens bíblicas, quis levar o assunto pra outro lado, disfarçar, por achar melhor nem chegar aos pormenores. Porém os dois insistiram e o religioso não teve saída:
“Diz em Ezequiel: A todas as prostitutas se dão presentes, mas tu fizeste brindes a todos os teus amantes, procedeste com largueza para que de todos os lados viessem prostituir-se contigo”.
“E diz Eclesiástico: Aquele que se une às prostitutas é um homem de nenhuma valia; tornar-se-á pasto da podridão e dos vermes; ficará sendo um grande exemplo, e sua alma será suprimida do número dos vivos”.
E o casamento acabou ali mesmo, com o homem tomando da garrafa de aguardente do sacerdote e depois chamando a mulher de puta rampeira e outras coisas impronunciáveis. Foi preciso o da igreja dizer que não admitia na sua sacristia nem corno bêbado nem adúltera desavergonhada. E expulsou-os debaixo de vara.
Mas no instante seguinte correu em direção à moradia do homem das citações para dar um basta de vez naquilo tudo, pois já não tinha mais sossego com tanta gente ido até a igreja para saber disso ou daquilo, e tudo por causa dele que não deixava dessa mania de falar por códigos.
Mas calmamente o homem disse: “Malaquias, capítulo 2, versículos 1 a 3”. E o velho sacerdote bramiu: “Pelo amor de Deus, esqueça isso!”. Mas enfim o homem falou:
“A vós, ó sacerdotes, dou esta ordem: Se não me ouvirdes, se não tomardes a peito a glória de meu nome – diz o Senhor dos exércitos -, lançarei contra vós a maldição, trocarei em maldições as vossas bênçãos; aliás, já o fiz, porque não tomastes a peito as minhas ordens. Eis que vou abater vosso braço, espalhar-vos esterco no rosto - o esterco de vossas festas - e sereis lançados fora com ele”.



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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