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sexta-feira, 3 de agosto de 2012

JORGE AMADO, EU SÓ QUERIA UM CAIS, UM CACAU, UMA FLOR AGRESTE... (Crônica)

                      
                                          Rangel Alves da Costa*


Que Deus me perdoe o que vou fazer. Que eu não seja castigado por remoer sobre o nome de quem já se tornou apenas saudade, mas não podia, de jeito nenhum, deixar de dizer umas poucas e boas a Jorge Amado. Esse mesmo, o Amado Jorge, o escritor de cais, de cacau, de flor agrestina.
Há muito que gostaria de ter enviado uma carta raivosa endereçada à Rua Alagoinhas, 33, no Rio Vermelho, e dizendo tudo. Mas deixei simplesmente o tempo ir passando. E o tempo passou demais. Daqui a poucos dias, mais precisamente no dia 10 de agosto, estará completando cem anos de nascimento. E nascido em meio ao cacau de Ferradas, distrito da baiana Itabuna. Fruto de amor e ódio, de riqueza e morte, como tantas vezes escreveu.
O mundo literário estará em festa, toda a Bahia, do recôncavo ao sertão, também; o Brasil inteiro mais uma vez homenageará sua obra. Ora, foram 38 livros publicados e inúmeras traduções mundo afora. E só não recebeu o Nobel pelo conservadorismo daqueles velhotes da academia que jamais avistaram a beleza da flor no meio das coxas de Gabriela nem o sexo pastoril de Tieta.
Verdade é que as comemorações serão muitas, mas infelizmente, de minha parte, não posso fazer o mesmo. E não posso por muitas razões. Que digam que é inveja, raiva, ciúme, covardia, animosidade barata, coisa de gente que não tem o que fazer. Tudo bem, aceito, até mesmo porque sei que não deveria fazer isso. Mas faço.
Seu Jorge, o senhor não tinha o direito de partir assim, ainda tão cedo, devendo a cada apreciador de sua pena mais uma síntese da história brasileira a partir do fazer verdadeiro do povo. Um povo mulato, negro, branco europeu, imigrante, de religiosidade diversa, sincrética, com suas estórias de amor, paixão, ódio, vingança, piedade, descendo ou subindo a ladeira, cortando vereda, entrando na igreja, sendo recebido pelos orixás.
Isso não se faz, Seu Jorge. Os seus livros, personagens, estórias, tramas, enredos, não fizeram outra coisa senão esgotar minha criatividade. Como posso criar se tudo já foi criado e dito pela boca do coronel, da prostituta, do proxeneta, do pai e da mãe de santo, do jagunço e do servil nordestino, da matrona balofa, da mocinha sonhadora e almofadinhas forniquentos?
Como posso escrever sobre a desfeita, a ferrenha disputa entre afamados coronéis do cacau, se não me resta mais nenhum jagunço, nenhuma cartucheira pendida na sela, nenhum rifle ou mosquetão, nenhuma covardia na emboscada, nenhuma frieza na tocaiagem? Não há nem mais jeito de mandar apertar o gatilho, de fazer chegar ao ouvido do velho mandante de terno de linho que o seu inimigo havia ficado estrebuchado na curva da estrada.
Como posso descrever a vida no cais, a vida no porto, a vida marinheira, a saudosa vida, se todas as vidas já foram descritas por sua pena? Queria descrever o pescador partindo pra luta do dia, a noite chegando e nem vulto ao longe; a companheira chorosa esperando, o tempo passando e a notícia de dor. E todo o cais velando o amigo, e todo o mar chorando o conhecido, e todo homem do mar temendo não voltar no dia seguinte. Tudo já está nos seus livros, tudo isso já foi escrito.
Seu Jorge, que falasse sobre os meninos de rua, as crianças abandonadas, os pivetes de mão estendida, de mão desvalida, de mão de furto e de roubo, e também sobre aqueles capitães da areia levantando bandeiras para a revolta, mas deixasse ao menos um pouquinho dessas vidas imensas e tão pequeninas para serem descritas por outras mãos. Eu mesmo, por exemplo, queria falar sobre o menor que faz da rua um microcosmo para lutar contra as injustiças. Mas posso?
Desculpe-me dizer, mas não passaste, Amado Jorge, de um egoísta, de um inveterado larápio das coisas boas da vida e, de forma também coronelista, juntado tudo no seu feudo romancista. Comeu todas as francesas dos cabarés, fez amizades suspeitas com as maiores cafetinas, alisou as coxas lisas e branquinhas das filhas dos coronéis, emprestou a juros absurdos o sustento dos bêbados e noctívagos, trouxe a menina flor sertaneja pra cidade e depois ofereceu casa e roupa de chita.
Meu sonho maior, Seu Jorge, era ter tido oportunidade de passar a perna na sua incomparável criatividade. Quando pensasse em escrever sobre um cavaleiro e sua esperança de transformar o mundo, eu já teria escrito sobre a liberdade como luz no fim do túnel; quando tencionasse escrever sobre uma fogosa pastora de cabras, eu já teria escrito que ela não passava de uma cabra servindo de pasto para os moços carentes do agreste. Mas tem nada não Seu Jorge, tem nada não.
Fique com raiva se quiser, mas juro que bem antes eu já tinha pensado em escrever sobre o adultério fantasmagórico de Flor, a tocaia que o coronel mandou preparar para o inimigo de mesma patente, os olhos da clientela nas ancas da jovem e doce Gabriela, os sonhos revolucionários de Malvina, a safadeza de Tonico Bastos, o cajado ignorante do velho pai descendo no lombo safado da filha Tieta, o adultério mais deslavado, a fé mais verdadeira, os santos africanos comandando os terreiros e as vidas, os barcos voltando cheios de frutas olorosas, e um lenço aberto na mão à beira do cais.
Agora vou confessar uma coisa, segredo que escrevo em marca d’água e digo baixinho: li e releio seus livros todos os dias; a cada dia me encanto mais com seu maravilhoso mundo, e juro que jamais abdicarei de ser um fiel amante dessas páginas que maravilhosamente pulsam no meu sangue nordestino.
Mas peço um favor: Quando eu vender minha safra cacaueira e junto com dois capangas for fazer uma visitinha ao Bataclan, que Maria Machadão feche as portas do recinto e mande à minha presença as moças novas da casa: Gabriela, Dona Flor, Tieta e Tereza Batista. Juro que de lá sairei cansado de guerra.

  

Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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