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quarta-feira, 8 de agosto de 2012

DEVOTOS (Crônica)


                                           Rangel Alves da Costa*


Que Deus seja o manto dessa moradia, diz a velha senhora. A outra acende uma vela para São Jorge Guerreiro; a solteirona amarra a fita amarela aos pés de Santo Antonio na esperança de logo arranjar casamento; a beata não sabe mais nem qual santo se apega, pois devota da Virgem Maria, se ajoelhando aos pés de Santo Expedito, jamais deixando de invocar a Santíssima Trindade.
A devoção toma conta do sertão, corta estrada e vereda, entra na casa do remediado e do pobre. Não há moradia no azulejo, tijolo ou barro, que não tenha um habitante cuja devoção não seja exemplo maior da fé e da religiosidade de um povo imensamente apegado à proteção das santidades.
Crença em santo milagreiro, em beato santificado, em mártir do catolicismo, nas divindades criadas pelo próprio povo. E isto porque para receber devoção não precisa que o devotado seja necessariamente reconhecido pela igreja, pois a fé do povo no poder milagreiro de cada um, de repente eleva um desconhecido aos altares.
No sertão sergipano há um lugarejo chamado Cruz da Donzela. Dizem os mais antigos que neste local uma bela mocinha, de inocência virginal, perdeu a vida durante um ataque de um estuprador. No local da tragédia foi colocada uma cruz, depois construída uma igrejinha, e hoje o pequeno templo é venerado por pessoas da região que ali chegam para pagar promessas, fazer pedidos e orações. A donzela, como se vê, tornou-se uma espécie de santa para os habitantes daquela região.
Muitas pessoas que passaram quase que despercebidas pela vida, mas que no percurso terreno foram caracterizadas pelas boas ações, por uma vida dedicada a ajudar o próximo, ou mesmo porque morreram de forma inesperadamente trágica, não é difícil que tendam a operar milagres mesmo depois de muito tempo de falecimento. Logicamente que a igreja irá relutar em reconhecer tais milagres, fato que não tem nenhuma valia para fins de devoção.
Muitos defendem que o milagre é consequência imediata da fé. Comungando neste sentido, afirmo ainda que muitas vezes nem é preciso que haja uma cura ou uma transformação física ou espiritual para que o milagre seja confirmado e o povo passe cada vez mais a acreditar no poder milagreiro daquele que foi escolhido para interceder perante Deus nas suas súplicas.
Padre Cícero Romão Batista, o Padim Ciço perante os fiéis sertanejos, é devotado dividido em duas frentes. Durante as comemorações alusivas ao seu nome, ali estarão presentes os devotos, aqueles que fervorosamente acreditam na sua santidade e no seu poder milagreiro, e também os que estão ali já para pagar promessas pelas graças recebidas. A devoção destes já se extremada no sentido de certificar o milagre advindo do Santo do Juazeiro.
E tais milagres ultrapassam as fronteiras da crença para se transformar em realidade, em fato verificável. Por mais que se diga que tudo não passa de uma ilusão mística, fanática e ignorante do povo, ainda assim não há como desconhecer a força da fé, e nessa fé a certeza do milagre. E as provas são mostradas nas salas dos ex-votos, estando ali expostos milhares de membros do corpo humano que foram curados pelo Padim Ciço.
Por isso mesmo é que a devoção assume um patamar muito acima da simples crença, do conhecimento religioso e da prática religiosa. Diria que a devoção é a crença numa divindade, santidade ou ser que se apresenta diante do devoto de forma quase que humanizada, amiga, protetora, apta a atender seus anseios e seus rogos. Diria ainda que a devoção é a particularização de fé, de modo que há uma escolha e uma certeza que o escolhido, ou devotado, pode operar milagre.
Até hoje nem Padim Ciço nem Frei Damião foram reconhecidos como santos pelo Vaticano. A donzela da cruz sequer é mencionada pela igreja. Beatos e santos populares surgem por todos os lugares e o que se observa é o resguardo total da Congregação Vaticana. Mas a verdade é que em casos de devoção, de veneração popular, tanto faz que a Igreja estude os milagres ou não.
Não precisa. Devoção não é religião, mas pura fé. E quando a fé se extremiza, então o povo escolhe o santo que quer. E o melhor de tudo é que os milagres continuam acontecendo. E ninguém vai provar o contrário daquilo que o povo humilde fervorosamente acredita.

  

Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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