SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 1 de agosto de 2012

CASA DE BARRO (E A FAMÍLIA TAMBÉM) (Crônica)


                                           Rangel Alves da Costa*


Depois da estrada de chão, entrando numa vereda de mato rasteiro, logo adiante se avistava o descampado. E no meio dele a casa de barro.
Barro batido, feito parede na ripa presa à corda de caroá. Barro visguento, jogada de longe e tomando a direção certa. Um monte aqui outro acolá e a parede ia sendo formada. Depois de seca era uma parede qualquer, firme, forte, até que as intempéries permitissem.
Casa de barro batido, levantada já com mais de sete anos. A sala da frente, dois quartos, a cozinha. Só isso. O banheiro era um quartinho feito de palha de bananeira, lá depois da porta de trás.
A cobertura era de telha sim, mas de areia sem visgo, presente de um político em eleição passada. Já carcomida pelo tempo, quebrando as pontas, desfazendo as juntas, deixando passar pingo d’água quando chuviscava.
Na chuva, com goteira por todo lugar, as águas caíam e iam formando poças por cima do chão de terra batida. Não molhava os móveis, os enfeites, as roupas, a cristaleira, a mesa coberta de toalha rendada, simplesmente porque nada disso existia.
Existiam sim, dois meninos, um pai e uma mãe, uma família completa, inteira, e bem sertaneja. João o maiorzinho, José o menorzinho; a mãe era Sebastiana; Beraldo o pai. E também um cachorro, um gato, um papagaio...
Madrugada ainda, tempo fechado, horizonte ainda escurecido. O galo nem havia cantado ainda sua manhã e a porta já era aberta. Apenas aberta pelo barulho do ferrolho, mas sem ninguém aparecer ainda.
Sons de panela batendo, alguma coisa caindo, uma madeira rangendo, uma voz e uma palavra. Ninguém ainda na porta da frente, mas já movimentação na porta de trás. Beraldo ajeitava o feixe de lenha para acender o fogo, enquanto Sebastiana deitava a cuia no tonel enferrujado para pegar um pouco d’água.
A água era pouca, economizada com o maior cuidado. Só era usada para fazer comida e coada para ser bebida. Depois de coada ia pra moringa, depois pra janela e para o milagre da vida.
Ninguém há de negar que não coisa mais saborosa no mundo do que água de moringa, adormecida na janela e em noite de lua cheia. Faz o milagre de matar a sede e de curar doença, de afastar a fadiga e trazer vigor. Tem gente que guarda uma ao lado da cama.
Pois bem. Depois de pegar a cuia d’água, jogar o líquido numa vasilha antiga e amassada de alumínio, a mulher olhou pro marido acendendo o fogo e disse que mais uma vez não tinham nem um naco de pão pra dar aos meninos quando levantassem.
Beraldo não olhou no olho da esposa e ela bem sabia o porquê. O coitado lacrimejava toda vez que ouvia coisa daquele tipo. Trabalhava feito um desgraçado debaixo do sol, cuidando da terra dos outros, limpando, coivarando, mas não tinha jeito de sair daquela maldita pobreza.
Perguntou se ainda tinha farinha. Ainda restava um tiquinho. Então despeje um tanto numa xícara e outro tanto noutra, depois jogue café por cima. Não há comida melhor quando não se tem nada. E a gente bebe um gole de café e fica de barriga cheia, ao menos em pensamento. Disse o entristecido Beraldo.
João, o maiorzinho, já havia levantado e saído porta afora. José, o menorzinho, continuava no chão do quarto fazendo a primeira refeição do dia. Metia os dedos no barro da parede e vinha com a terra na mão. Comia tudo que se lambuza. O coitadinho era só couro e o osso, mas uma barriga imensa e cheia de verminoses.
O maiorzinho tentava matar um calango pra assar quando olhou pra cima e saiu em disparada. Entrou porta adentro e foi dizer aos pais que a trovoada vinha que vinha, feroz, sedenta.
Já quase três anos sem chover, quando as chuvas chegaram foi coisa de arrepiar o cabelo, promessa ser revertida, rogos voltados agora para a água não acabar com tudo. Mas ela não deu ouvidos e caiu com toda força, rolou terra acima e ribanceira abaixo, tanto enchia tudo como levava o que encontrasse pela frente.
Como era triste de se ver aquela família sofrendo debaixo de um pé de pau. Olhavam pra casa de barro e só avistavam lama. Que bom se todo mundo fosse feito de ferro, de aço, de fibra. Mas não.
A família também era de barro.


  
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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