SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 31 de julho de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (97)


                                                 Rangel Alves da Costa*


Passou a noite de sono tranquilo, fechado. Acordou na madrugada do galo imaginário. Que canto bonito, altivo, empolgante. Após se ajoelhar aos pés do oratório para a primeira prece do dia, abriu a porta e a janela, deixou que a luminosidade invadisse moradia e vida.
Estava consciente de tudo que acontecia ao redor, do barulho da mataria, dos sons dos bichos, do sopro já morno do vento, da mesma vida de sempre. Sim, era a mesma vida de sempre, de tanto silêncio e tanta solidão, porém agora a ser vivenciada de uma outra maneira.
Durante a prece prometeu a si mesma que não se deixaria levar pelos hálitos da tristeza e do sofrimento. Era sadia, não tinha qualquer deficiência física, sabia falar, andar, ler vagarosamente, cuidar de casa e de si mesma, possuidora, portanto, de uma vida normal. Daí não haver razão para cavar tristeza na terra e querer nela deitar.
Ademais, tinha de compreender e aceitar outras realidades ali existentes, e tudo fruto do meio desolado em que vivia, da distância de tudo, do afastamento forçado de outras pessoas. Não tinha amigos nem pessoas para conversar por causa disso, pelo isolamento do lugar onde vivia.
E ainda por consequência desse isolamento, não encontrava um moço bonito para olhar no olho, um galanteio de uma boca apaixonada, um homem para pensar e viver as alegrias e desilusões amorosas próprias de qualquer um. E também por isso não recebia um buquê de flores do campo, não era presenteada com uma fruta do mato, não recebia uma lembrancinha carinhosamente talhada na madeira.
Mas o que se mostrava como fundamental nessa promessa de novo pensar e agir era a consciência plena dessa realidade. Tendo a exata noção do contexto onde vivia e porque tudo acontecia daquele jeito, então tudo seria mais fácil de ser superado. E o passo seguinte seria buscar sair dessa realidade fechada, de mesmice, de nada acontecer, do mesmo amanhecer com o mesmo anoitecer.
Somente assim seria possível se motivar para conhecer outros lugares, outras pessoas, outros modos de ser e viver; somente assim seria possível de vez em quando ir à cidade fazer suas compras, abrir a cancela para a viagem, para o conhecimento, para novas experiências. Não precisava vender a pequena propriedade de herança e tentar a vida noutro lugar. Não. Continuando ali seria também do mundo, de outros mundos.
Pensar assim já era caminho aberto. Agir assim já era caminhar pelo caminho aberto. Seguir adiante seria outra coisa, outra história, coisa para o futuro retratar. E talvez porque tão disposta para uma nova realidade é que agiu diferente naquela manhã. Resolveu que mandaria urgentemente consertar o velho carro de boi, daria um jeito pra arranjar um garrote bom para colocar adiante do transporte.
Não demorou muito, procurou uma enxada e começou a arrancar os matos que cresciam ao redor da casa; subiu numa escada para ver onde as telhas estavam quebrando; passou o olho cuidadosamente em cada buraco que se abria na parede; juntou garranchos, folhas secas e restos do mato morto em coivara para tocar fogo mais tarde; se dirigiu calmamente até sua plantinha de pé de parede, alisou o tronco, sorrio, conversou com ela.
Em todo esse processo de mexer numa coisa e noutra ali fora, varrendo, limpando, passando a enxada, certamente que logo chegaria ao local onde a pedrinha continuava escondida somente esperando a sua dona. A visitante querubim sabia que ela a encontraria, o seu irmão e o amiguinho mortos queriam demais que ela se apoderasse logo daquele amuleto. Ora, na pedrinha estaria uma indescritível surpresa. Mas ainda não foi nesse dia que Crisosta lançou a mão sobre o objeto tão precioso.
Passaram-se um, cinco, mais de dez anos assim, com ela realmente modificada, cheia de planos, levando uma vida normal e se afastando o quanto podia de tristes, angústias e sofrimentos. Mas não consertou o carro de boi, não comprou o garrote, deixou a casa continuar com os buracos aumentando e as telhas deteriorando ainda mais. A sua planta de vez em quando murchava rejuvenescia.
E por mais que quisesse manter um aspecto feliz, jovial, com vigor físico, ela não conseguia mais. Sua pele clara e sempre exposta ao sol começava a mostrar pequenas rugas. A mocinha já estava distante, a moça agora já era madura, já era mulher cuja idade corria cada vez mais apressada.
Tinha medo do tempo, do tempo passando, o tempo correndo, fugindo e ela ficando. E fugia do espelho, não queria nem mais ver um espelho em sua frente. Um dia teve coragem e se olhou. E perguntou onde ela estava, e perguntou por onde andava aquela Crisosta. E chorou.
Continua...


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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